Uma das categorias mais interessantes para se estudar a agroecologia é aquela que toma o trabalho como uma dimensão ontológica do ser social, ou seja, o trabalho como uma atividade que está relacionada com a natureza do ser humano que vive em sociedade.

Ao pensarmos na natureza do ser humano estamos, assim, implicando as ciências biológicas. Por isso, considero viável correlacionar o pensamento de Karl Marx com o de Humberto Maturana e Franciso Varela, de forma que:

… podemos conceber o trabalho como distintivo do existir humano na medida em que seu processo (o trabalho em si, seu objeto e seus meios) configuraria uma atividade ontogênica que, ao se estabilizar através das gerações na dinâmica comunicativa de um meio social e se tornar um comportamento cultural, teria sua semântica enredada no vórtice das condutas comportamentais reflexivo-linguísticas (MARX, 2013; MATURANA; VARELA, 2001)

Por uma ciência popular da vida – 2018

Alguns elementos se destacam nessa passagem. O primeiro deles é o processo de trabalho, sempre destinado a produção de valores de uso que envolve:

Processo de Trabalho

Trabalho em si:
A priori, todo trabalho é uma ação efetiva que envolve um conhecimento posto em prática e estabelece a mediação entre ser humano e seu ambiente. Entendemos como conhecimento um comportamento que pode-se dizer efetivo ou adequado em um determinado contexto. Dessa forma, todo conhecimento está manifestado em um ato, uma prática — é, portanto, o trabalho em si. Para ressaltar essa inseparabilidade entre corpo e mente utilizamos o termo prática de conhecimento. Falamos em força de trabalho para evidenciar que a ação efetiva do trabalho se dá sempre em um domínio cognitivo que explica e orienta a produção de valores de uso de qualquer tipo;

Objeto de trabalho:
Temos o objeto preexistente do trabalho, que são aqueles objetos que o ser humano obtém para desenvolver sua prática sem que um trabalho prévio tenha sido aplicado sobre esse objeto (água ou peixe de um rio, pedras, minérios, etc.). Quando uma prática de conhecimento toma um objeto que já tenha sido manipulado pelo trabalho de alguém, então esse objeto torna-se matéria-prima (tábuas de madeira, pregos, pilão, etc.);

Meio de trabalho:
Tudo que é utilizado por uma pessoa para manipular o objeto de trabalho, ou seja, tudo aquilo que a pessoa interpõe entre si e o objeto de trabalho, é considerado meio de trabalho. Entram aqui as ferramentas, os instrumentos, as máquinas, e, em certa medida, a própria terra .

Outro elemento da passagem que vale destacar é aquela que afirma que o processo de trabalho configura uma atividade ontogênica, que se estabiliza através das gerações. Ontogenia são as mudanças biológicas pelas quais um indivíduo passa ao longo de sua vida, do nascimento até seu desenvolvimento final. Vale lembrar, no entanto, que estamos assumindo uma concepção social do ser humano, que pretendemos não separar corpo e mente — ainda que o façamos na linguagem. Isso significa que podemos entender ontogenia como as mudanças biossociais que um indivíduo experimenta ao longo de sua trajetória nesse planeta.

Retomando então, o processo de trabalho é algo natural do fenômeno humano. Mas essa natureza não está em sua carga genética, ela não é filogenética; Ela é ontogenética. Ou seja, a prática que o ser humano desenvolve como trabalho não é instintivo, é aprendido; não está em seu DNA mas constitui o domínio cognitivo do qual a pessoa faz parte. O processo de trabalho faz parte da natureza humana desde sua inserção em um determinado grupo, em uma determinada cultura. As práticas de conhecimento que um indivíduo desenvolve na sua infância, juventude e maturidade estão sempre inseridas em alguma sociabilidade, que envolve valores, crenças, interesses, ideologias, inseridas em condutas que remetem a determinado processo identitário, envolvendo personalidade, linguagem, interpretação de mundo, etc. O mesmo podemos dizer dos objetos e dos meios de trabalho que uma pessoa utiliza: estão, igualmente, inseridos em relações sociais, sistemas econômicos nos quais estes objetos e meios têm ou não valor. Isso ocorre de tal sorte que um mesmo objeto pode ser admirado em um circuito econômico e em outro não despertar o menor interesse, a depender da esfera social em que ele se insere.

Enquanto método de pesquisa para o trabalho nessa dimensão da agroecologia, vale lembrar da Etnografia, que busca descrever um sistema de significados culturais de um determinado grupo

Mais um elemento pode ser destacado daquela passagem, quando ela diz respeito ao trabalho como distintivo do existir humano. Na abordagem biossocial aqui adotada, a existência humana de cada indivíduo acontece na medida em que ele se socializa (se humaniza) e na medida em que desenvolve sua humanidade em condutas linguísticas. Esta conduta expressa o que cada pessoa é, faz, conhece e comunica (ser – fazer – conhecer – comunicar). Assim, todo trabalho que o ser humano e seu grupo realiza — trabalho, em princípio, necessário na manutenção da correspondência entre o ser humano e o meio — depende e integra-se com sua identidade, personalidade e com as relações sociais estabelecidas, incluindo-se nestas relações aquelas organizadas pelo sistema político e econômico.

Já aqui podemos instigar alguns elementos de interesse educacional: Na medida em que o processo de trabalho de uma cultura passa a ser transformado de forma impositiva, que consequências podemos prever?

É nesta codependência e integração que o existir humano acontece. Na medida em que a história humana nos conta que a ocupação das pessoas no planeta é geradora de diversidade sociocultural, falamos em distintos domínios cognitivos. Estes domínios manifestam a diversidade de significados que a linguagem dos diferentes povos faz surgir, em uma dinâmica contínua e recorrente ao longo das gerações.

O trabalho, nesse visão, está constituído em uma totalidade biossocial que oferece significado de vida para as pessoas que nele se engajam. O que distingue o ser humano de outros animais, na perspectiva de uma evolução darwiniana, é essa recorrência cada vez mais intensa no domínio linguístico. Ao que tudo indica, manter como característica biológica nossa capacidade de aprender a se comunicar/sociabilizar ampliou nossa chance de sobreviver nos ambientes ocupados. Toda prática de conhecimento, todo trabalho fruto e semente dessa capacidade foi, digamos, “selecionado naturalmente” ao longo dos últimos 300 mil anos.

Isto é a força de trabalho — ou capacidade de trabalho, identidade apontada por Marx mesmo. Ser capaz de trabalhar é ser capaz de colocar em movimento corpo e personalidade. Um indivíduo capaz de trabalho é um indivíduo que está biológica e socialmente atrelado ao domínio linguístico de uma comunidade surgido ao longo das gerações que o antecederam. Toda conduta linguística é o resultado de nossa congruência com o meio, garantida pela vida em comunidade.

O trabalho é sempre uma prática significada, efetiva e adequada num contexto social assinalado; sempre manifesta uma efetividade operacional no domínio de existência do ser humano.

Algumas perguntas pertinentes:
Trabalho: quem determina seus significados? quem os pronuncia?
Trabalho: adequado a que fim? congruente com que meio?

É a ampliação gradual do modo de vida humano nestes domínios cognitivos — na dialética entre corporalidade e personalidade — o que confere à espécie a característica reflexiva, consciente, tão peculiar dentre todas as outras espécies do reino animal. Essa participação cada vez maior nos domínios cognitivos, causa e efeito da evolução humana, conferiu-nos crescente habilidade de aprendizagem, através de comportamentos comunicativos típicos do fenômeno social.

Nossa conduta comunicativa — frisaremos agora — é social, nossa conduta social é comunicativa. Dessa constatação podemos extrair algumas considerações.

Organização social para o trabalho

O trabalho em si, enquanto prática de conhecimento efetiva, tem a finalidade de garantir a sobrevivência das pessoas em um dado ecossistema. Para que o trabalho garanta sobrevivência, e considerando a complexidade existente nos ambientes naturais, já podemos imaginar que um longo período de tempo seja necessário. Ou seja, é preciso certo tempo para que as pessoas aprendam a lidar com as plantas, com os animais, com o clima, relevo, rios, enfim, com os componentes bióticos e abióticos do sistema ecológico no qual vivem.

Entendemos por conduta cultural a estabilidade transgeracional de configurações comportamentais ontogenicamente adquiridas na dinâmica comunicativa de um meio social

Tópicos a desenvolver:

  • Diversidade e conduta cultural: sentido ampliado para o processo de trabalho. Tanto sua prática, quanto seus objetos quanto seus meios respondem aos sentidos produzidos pelos povos (aproximações com sistema comunal, rompimento com ideologia burguesa e do marxismo vulgar do progresso, com transformação na periferia do capital, socialismo indo-americano (nota Novaes, mundo trabalho associado);
  • Evolução do modo humano de existência e comunidade: a legitimação do outro na convivência como condição do processo social de trabalho. Ideia de comuna como perspectiva ontológica, tensionamentos entre perspectiva individualista (empreendedorismo neoliberal) e coletivista (autogestão comunal); sistema comunal andino e sociedade comunal do futuro (nota Nascimento).
  • Domínio capitalista do processo de trabalho, psicopatologia e sociopatologia: alienação, separação e fragmentação dos domínios populares (nota Novaes, mundo trabalho associado);
  • Resistência social e tecnologia social como plataforma cognitiva de outra organização social para o trabalho: economia solidária, mundo do trabalho associado e embriões sociotécnicos para além do capital.