Prá início de conversa

Os estágios curriculares são momentos importantes de interação com as escolas e com os estudantes. Na perspectiva teórico metodológica da Educação do Campo – EdoC, temos a intenção de articular os conteúdos curriculares com a realidade das e dos estudantes da educação básica, levando-se em conta o perfil sociocultural e socioeconômico da comunidade de entorno da escola e as principais contradições do território. Entre essas, e considerando o agenciamento da agroecologia na prática pedagógica, nos interessa explorar as contradições das forças produtivas da região assim como a organização do trabalho e do conhecimento que elas produzem, ao menos tendencialmente.

Ao longo dos semestres no curso, nos quais foram ofertadas as disciplinas de estágios, algumas dificuldades ficam evidentes, tais como a implementação de uma interdisciplinaridade significativa e/ou uma forte contextualização com a vida comunitária. A mesma dificuldade encontrada na educação básica, em certa medida, é observada no próprio processo de formação inicial do curso, o que certamente aponta caminhos para a comunidade Lecampo no sentido de avançar na materialização de um currículo que tenha como matriz formativa a agroecologia.

Nesse semestre de 2022 Inverno, através da parceria com profissionais de duas escolas de Dom Pedrito-RS, teremos uma oportunidade de exercitar alguns elementos que nos parecem caros no avanço pretendido. Um deles envolve tomarmos a pecuária tradicional, familiar, como prática de conhecimento de referência na contextualização de conteúdos escolares, em especial os da ciências biológicas a serem trabalhados no ensino médio dos 1º, 2º e 3º anos.

Certamente essa oportunidade configura-se como um pequeno passo nos “caminhos para transformação da escola”; temos clareza de que a efetivação da proposta pedagógica almejada, cujas bases teórico metodológicas nos remetem às experiências sociais de maior estofo, como as do MST paranaense ou baiano, entre outras tantas, necessita de maior intensidade político pedagógica, mais tempo para amadurecimento, maior disposição de enfrentamentos. No entanto, não nos furtaremos de extrair dessa oportunidade as aprendizagens possíveis, mobilizando acúmulos anteriores e buscando sistematizar os conhecimentos que ela vai proporcionar.

Quando citamos as escolas do campo com maior autonomia de movimentos sociais como MST, ou as Escolas Família Agrícola – EFA, ou outras experiências bem sucedidas com base na EdoC, faço referência às experiências sociais em educação que, inspiradas na educação libertadora, na pedagogia soviética pós-revolução 1917, têm conseguido avançar no inventário da realidade e nos complexos de estudos, nos processos identitários da comunidade como ponto de partida do trabalho curricular, na história ambiental como objeto de conhecimento escolar, contribuindo para que estudantes e comunidade se apropriem da dinâmica espaço-temporal de seus territórios e superem a alienação que marca a educação capitalista.

Em especial no meio rural, o processo de industrialização capitalista tem gerado problemas de grande magnitude, parte deles ainda subdimensionados. A agricultura industrial e suas formas antecessoras, em particular em países colonizados como o Brasil, tem sido a ponta de lança do etnocídio indígena e da destruição da diversidade da vida nos diferentes biomas brasileiros. A aniquilação dos povos e suas culturas, assim como da agrobiodiversidade associada à elas, representa um crime contra a humanidade e o planeta, falta grave que não deve manter-se na impunidade.

Nesse campo de análise, estamos alinhados com as correntes de pensamento e ação que promovem a articulação entre os conhecimentos historicamente produzidos pela ciência e os conhecimentos tradicionais, de base popular, em especial aqueles ligados à memória biocultural das comunidades tradicionais e indígenas. Temos consciência dos desafios e obstáculos para efetivar essa articulação, ainda assim, a ideia de que os conhecimentos científicos devem estar a serviço das práticas de conhecimento local, na promoção da saúde e da estabilidade dos ecossistemas, segue sendo nossa perspectiva teórica.

Foi com base, portanto, na vinculação entre Educação do Campo, Agroecologia e Memória Biocultural que desenvolvemos o projeto de pesquisa Tecnologias Socioecológicas e Práticas Pedagógicas no Rio Grande do Sul, que contou com apoio do Programa de Desenvolvimento Acadêmico – PDA Unipampa e esteve filiado a um projeto da UFSM que contou com apoio da Chamada CNPq/MCTIC/MDS nº 36/2018 Tecnologia Social1. A investigação resultou na elaboração do Mapeamento Participativo de Tecnologias Sociais em Agroecologia e de um material didático propostos a partir dele, o Estudo de Caso: Aprendizagem Mútua na Educação Básica. Em boa medida, o estágio do corrente semestre buscará beneficiar-se dos acúmulos teóricos e práticas citados acima.

Vale destacar também que a iniciativa em curso faz conexão com os objetivos do Observatório da Educação do Campo, projeto de pesquisa que busca não apenas mapear as escolas do campo — conhecer sua infraestrutura, quantidade de profissionais envolvidos, grau de instrução do corpo docente, etc. — mas também analisar os esforços político-pedagógicos da escola e da comunidade escolar em organizar um currículo sensível às dinâmicas culturais, produtivas e econômicas das populações do campo, em especial na construção e fortalecimento da soberania alimentar.

Conhecimento e realidade pedritense

A grosso modo, a proposta educativa que interessa à EdoC deve apropriar-se das práticas de conhecimento camponês que sustentam e permitem a reprodução da vida no campo. Sabemos, através do censo agropecuário, que é a agricultura familiar e camponesa que abastece a mesa das casas brasileiras. Mesmo assim, esse setor produtivo não recebe o reconhecimento público nem políticas adequadas para manter e qualificar a atividade produtiva.

Nesse cenário, os esforços pela EdoC podem caminhar no sentido de construir uma via alternativa à essa realidade, fazendo da escola um lugar que valoriza as práticas, as técnicas, os conhecimentos — os modos de vida, as lidas campeiras — que agricultores e pecuaristas dominam; fazendo da escola mais uma entidade que esteja a serviço do desenvolvimento rural sustentável de base popular, somando-se a outros sujeitos coletivos que fortalecem a agroecologia e a possibilidade de todas as pessoas alimentarem-se bem, com qualidade nutricional e comida sem veneno, produzida sem exploração do trabalho e da natureza, sem violência de gênero, com respeito à todos os seres envolvidos na manutenção da vida.

Enquanto educadoras/es, temos então a tarefa de identificar onde, no município de Dom Pedrito, acontece e se reproduzem essas práticas de conhecimento, essa lida campeira que pode fornecer segurança alimentar e nutricional para os pedritenses.

É preciso, aos poucos, dominarmos o “funcionamento” dessa lida, ou seja, de onde vêm esses conhecimentos? como eles são aplicados em um área? como são transmitidos de geração a geração? que finalidades e motivações essa lida campeira tem? que importância ela exerce na vida das pessoas? o que a enfraquece e o que pode fortalecê-la? É dominando a dinâmica das práticas de conhecimento associadas à lida campeira que teremos condição de extrair seu potencial pedagógico. Vale lembrar que a lida campeira tem sido configurada como um Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro, ou seja, é algo valioso que se manifesta na cultura camponesa de nossa região.

A partir desse momento, será necessário mobilizar um conjunto de conhecimentos tradicionalmente vinculados aos estágios supervisionados, tais como:

  • Conhecimento de experiências anteriores;
  • Conhecimento curricular em questão;
  • Conhecimento de gestão escolar e educacional;
  • Conhecimento da disciplina científica, em nosso caso biologia e ciências da natureza;
  • Conhecimento político-pedagógico capazes de sustentar a intencionalidade educativa da proposta.

Conhecer a região, portanto, torna-se fundamental no processo de contextualização da atividade educativa. Como foi estudado no 2º semestre da Lecampo, os contextos — sociopolítico, socioeconômico e socioeducacional — exercem forte influência em um dado território, impacta e determina os conhecimentos que são ou não são abordados nos currículos escolares, na formação de professoras/es, nos cursos técnicos e na universidade, que tem a tarefa de formar profissionais que vão atuar nesse mesmo território.

Podemos lançar mão, portanto, de toda informação que julgarmos pertinentes para essa contextualização pretendida pela EdoC. Faremos isso, de forma complementar às exigências do estágio, através da formalização de projetos de ensino e extensão, subsidiando e amparando da melhor forma essa etapa da trajetória formativa. Dados do Censo Agropecuário de 2017, do MapBiomas, entre outras servem de fonte secundária do processo de contextualização pedagógica.

A exemplo do estudo de caso citado acima, também utilizaremos o recurso geoespacial para localizar a área na qual as atividades agropecuárias servirão de contexto para a elaboração de práticas pedagógicas durante o estágio nas escolas de Dom Pedrito parceiras da proposta. A área em questão é o Sítio Rancho da Ladeira.

Imagem de satélite com delimitação da área do sítio, incluindo suas glebas internas