Como parte dos trabalhos que fazemos no curso “Residência Agrária”, fiz uma resenha pra disciplina de Agroecologia. O texto resenhado é na verdade uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal de São Carlos, no programa de Agroecologia que lá existe, já faz uns bons anos. Como o tema dessa dissertação é bem interessante, resolvi postar aqui a resenha, pois ela relaciona a produção de conhecimento em agroecologia a partir da implantação dos chamados Sistemas Agroflorestais.

Além disso, a experiência que o Henderson Nobre investiga se passa no Assentamento Sepé Tiaraju, o primeiro assentamento da categoria “Projeto de Desenvolvimento Sustentável”, do INCRA, mas que tem consonância com as reivindicações do MST.

Bem, pra quem quiser ver a dissertação, é só clicar aqui, e dar uma conferida no trabalho.

Os professores da disciplina no Residência são parte da “equipe técnica” que participou das atividades lá no Sepé, e de fato parece ter sido uma experiência importante quanto a metodologia utilizada no projeto, pelo menos é o que surge da leitura da dissertação, no que se refere a formação dos “agricultores experimentadores”. A dissertação, no entanto, não aprofunda, ou não retrata, em como foi o diálogo com o MST no desenrolar das ações, fato que acho importante ser pontuado pra compreendermos os desdobramentos organizacionais entre a ocupação e a consolidação dos assentamentos.

Aí vai então, a tal resenha:

Resenha do texto “Sistemas Agroflorestais e a Construção do Conhecimento Agroecológico em Assentamentos Rurais”

 

A dissertação “Sistemas Agroflorestais e a Construção do Conhecimento Agroecológico em Assentamentos Rurais”, de Henderson Nobre, aborda a produção de conhecimento que pode ser gerado quando assentados e técnicos se envolvem na implantação de sistemas sustentáveis de produção agroalimentar. Tanto a sustentabilidade agrícola quanto sua relação com a produção de conhecimento são temas caros para a Agroecologia, que nessa dissertação é compreendida como ciência que fornece uma base teórico-metodológica na construção do desenvolvimento rural sustentável.

A dissertação analisa a realidade de alguns assentados e assentadas que moram e trabalham na região de Ribeirão Preto, e que se dispuseram a elaborar algumas estratégias para desenvolverem sistemas sustentáveis de produção, baseados principalmente nos chamados Sistemas Agroflorestais – SAFs.

A dissertação de Henderson Nobre e seu desenvolvimento está inserida num conjunto de ações que acontecem no Assentamento Sepé Tiaraju, na região canavieira de Ribeirão Preto. Essas ações envolvem instituições como o INCRA, a EMBRAPA, a UFSCar, e, de certa forma, o próprio MST.

A multiplicidade de atividades nesse assentamento está diretamente atrelada ao fato do Sepé Tiaraju ter se tornado a primeira experiência de assentamento dentro da modalidade PDS – Projeto de Desenvolvimento Sustentável, em todo o Estado de São Paulo. Segundo Goldfarb (2007), haviam, em 2007, 15 projetos nessa modalidade. O PDS é uma categoria de assentamento rural instituída pelo INCRA, a partir do acúmulo gerado pela luta dos movimentos sociais do campo em torno da preocupação com o aspecto socioambiental da produção agropecuária.

O PDS, como modalidade de assentamento, e a Comuna da Terra, proposta organizacional do MST onde a terra é concedida para uso coletivo, integram uma estratégia política de grande relevância socioambiental para os movimentos sociais do campo e para os técnicos e extensionistas que apoiam a agroecologia como princípio para o desenvolvimento rural sustentável. Creio que essa reflexão poderia ser melhor pontuada pela dissertação, trazendo para o leitor, ainda que concisa, uma definição de Comuna da Terra e sua relação com o PDS, reforçando assim a interdependência entre o “social” e o “ambiental”.

Apesar das dificuldades de implementação desse modelo no Sepé Tiaraju, como nos descreve Nobre no capítulo 4, o PDS e a Comuna da Terra favorecem uma reflexão essencial acerca do uso da terra conquistada para a produção agroalimentar. Uma dimensão dessa reflexão está no fato de que a área do assentamento, sendo coletiva, reforça a constatação de que, ambientalmente falando, não existem fronteiras nítidas, as fronteiras políticas não coincidem com as dinâmicas biofísicas que encontramos nos agroecossistemas. É por isso que o PDS, que “visa garantir o sustento das famílias por meio do manejo ecológico e sustentado do meio ambiente, cultivando apenas áreas já desmatadas a partir de sistemas agroflorestais” (GOLDFARB, 2007), tende a ser o modelo mais apropriado às ações voltadas para a transição agroecológica das áreas de reforma agrária.

Nesse sentido, a dissertação de Henderson Nobre parte de pressupostos teórico-metodológicos importantes para se pensar a constituições desses sistemas agroflorestais, quais sejam de problematizar o conceito de “desenvolvimento sustentável” a partir dos problemas advindos da revolução verde e a partir da distinção entre essa proposta e o “crescimento econômico” que despreza as dinâmicas sociais, ambientais, culturais (capítulo 2, pág. 17); assumir a agroecologia como base paradigmática para se alcançar as mudanças sociais e ecológicas complexas (capítulo 2, pág. 18); a delimitação prático-conceitual na definição de um SAF, ao exigir presença de arbóreas florestais no consórcio e também por considerar que esse sistema, além de ser apropriado para a agricultura familiar, é capaz de confrontar a lógica dos sistemas convencionais de produção (capítulo 2 pág. 22 e 23), muitas vezes desenvolvidos em situações sociais e ecológicas diversas das encontradas na região dos trópicos; a “orquestração das diferentes disciplinas e formas de conhecimento que compõe seu pluralismo metodológico e epistemológico a partir de uma natureza dialética” (capítulo 3, pág. 37), o que implica reunir instrumentos metodológicos alinhados com o reconhecimento do protagonismo das agricultoras e agricultores do local, mantendo uma relação dialógica durante o desenvolvimento das ações, tais como a Pesquisa Ação Participativa e o cabedal das metodologias participativas que dessa perspectiva decorrem (capítulo 3, pág. 39).

Segundo o autor da dissertação, sua pesquisa se caracteriza como um recorte dentro de ações que o Núcleo de Agroecologia da EMBRAPA Meio Ambiente já desenvolve no assentamento. Nesse sentido, seu olhar esteve inscrito num projeto de pesquisa e capacitação agroecológica denominado “Capacitação sócio-ambiental para construção de projetos de desenvolvimento sustentável em assentamentos rurais no Estado de São Paulo”.

Apesar de reconhecer o significativo trabalho do MST durante a fase de acampamento, em que o comprometimento com um assentamento ecológico foi tecido, Nobre compreende que os conhecimentos técnicos adequados à realidade local não estavam presentes no grupo que conquistou a terra. Esse fato, portanto, justifica o início do processo de construção coletiva do conhecimento agroecológico no assentamento, envolvendo produtores e técnicos (capítulo 4, pág. 46).

Uma das estratégias básicas dessa construção coletiva foi a formalização do que foi chamada uma Unidade de Observação Participativa — UOP: uma área coletiva do assentamento com 0,25 hectares que pudesse proporcionar aos assentados uma experiência prática com os Sistemas Agroflorestais. No entanto, o que viabilizou a implantação da UOP foram as visitas que o grupo fez para conhecerem outros SAFs, já implantados em outras áreas do Estado (Fazenda São Joaquim e Cooperafloresta).

A constatação de que um SAF pode dar certo, fornecendo alimentos para a família e incrementando a renda, fez das experiências realizadas na UOP uma referência para que as assentadas e assentados participantes do projeto iniciassem experimentações em seus lotes, “desde sistemas mais simples em aleias de árvores com cultivos anuais até sistemas mais complexos multiestratificados com alta diversidade de espécies; com diferentes tamanhos que variam de quintais até lotes inteiros com SAF” (capítulo 4, pág. 58).

Visando a consolidação das experiências agroflorestais, a estratégia básica de ação extensionista foi instituir a figura do “agricultor experimentador”. Para alcançar esse objetivo, alguns princípios tiveram que ser utilizados, como “a valorização do conhecimento local; a disseminação de processos sociais de experimentação; a educação visando transcender a extensão rural; o técnico como catalisador de processos de aprendizagem; e, principalmente, a participação dos agricultores na transformação da realidade através da prática.” (capítulo 4, pág. 59).

Os elementos metodológicos para que tais princípios pudessem ser realmente valorizados estão descritos no capítulo 4, do item 4.3.1 até o item 4.3.6 (Planejamento Participativo, Oficinas, Cursos, Mutirões, Intercâmbio de experiências, Formação de agricultores experimentadores).

Ao observar a ativa participação dos assentados agrofloresteiros em programas como o PAA, Nobre avalia o sucesso do projeto, que proporcionou a implantação de sistemas que produzem grande diversidade de alimentos e que proporcionou o aumento do “mosaico de biodiversidade” onde antes havia monocultivo de cana-de-açúcar. Segundo o autor, é visível a transformação dos lotes, que passaram a inserir o componente arbóreo a tal ponto de se assemelharem a áreas de preservação permanente.

Outra avaliação interessante feita pelo autor se refere a capacidade que a escolha teórico-metodológica teve em democratizar o conhecimento, antes concentrado na equipe técnica e agora presente nas mãos dos agricultores, fato imprescindível para a manutenção das áreas e continuidade do processo de experimentação e aprendizagem.

O autor finaliza afirmando a concordância que sua pesquisa tem com as discussões e os avanços recentes da pesquisa em agroecologia feita mundo afora, interpretando que as metodologias participativas permitem que os objetivos da equipe técnica possa negociar horizontalmente com os objetivos e demandas dos assentados.

Sem romantizar o trabalho realizado, Nobre faz uma ressalva quanto a necessidade da criação de políticas públicas estruturais para se alcançar uma verdadeira sustentabilidade na agricultura familiar, como crédito, moradia, infraestrutura, educação e assistência técnica, principalmente nos anos iniciais de um assentamento rural. No caso específico do Sepé Tiaraju, é necessário que os órgãos envolvidos no PDS assumam de fato sua responsabilidade, aportando investimentos que fortaleçam a transição agroecológica do assentamento, compromisso realizado, inclusive, através de um Termo de Ajustamento de Conduta Ambiental — TAC Ambiental.

Creio que o contexto da pesquisa realizada por Henderson Nobre favoreceu o debate agroecológico a que ele se propôs realizar. A inserção da pesquisa enquanto recorte de ações mais amplas, que acontecem numa escala temporal pra além do tempo que hoje está destinado às pesquisas de mestrado, permite uma análise mais integradora do que ocorre em projetos dessa natureza. Diferentemente das práticas difusoras, tradicionalmente vinculadas à extensão rural clássica, as metodologias que incorporam o protagonismo dos atores locais carecem de tempo e maturidade, envolvendo a construção de uma relação de confiança entre os participantes.

Além desse aspecto institucional por onde caminha a investigação, o próprio assentamento Sepé Tiaraju apresenta-se como um marco histórico na construção da agroecologia no Estado de São Paulo, reflexo do esforço dos movimentos sociais em sinergia com profissionais de empresas públicas comprometidos com a base social que compõe os assentamentos de reforma agrária.

Referência Bibliográfica

GOLDFARB, Yamila. A Luta pela terra entre o campo e a cidade: as comunas da terra do MST, sua gestação, principais atores e desafios. 2007. 108 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Geografia Humana, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.


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