Uma conclusão preliminar que alguém que trabalha com educação do campo pode ter envolve a necessidade de se pensar a responsabilidade da educação escolar para além dos profissionais da educação. Sendo parte de uma dada totalidade, e considerando uma abordagem crítica, é preciso que a escola seja parte das ações sociais coletivas que geram transformação sociotécnica no território onde está inserida. O foco deve estar na sustentação e fortalecimento da agricultura familiar e camponesa.

Compreendemos esse movimento como parte do caminho para a transformação da escola tal como aponta a Educação do Campo protagonizada pelos movimentos sociais do campo. A vida social e o trabalho são elementos indispensáveis para a efetivação da educação escolar. Ressaltamos, no entanto, que esse entrosamento entre escola e realidade deve orientar-se por um objetivo sociopolítico mais amplo, em que fique explícita a construção de outro horizonte histórico, com base no poder popular.

A partir das tecnologias sociais em agroecologia, a proposta é utilizar um estudo de caso que contribua com este esforço pedagógico de fazer a escola participar da rede de relações animadas pelo trabalho socialmente necessário na produção de alimentos que se realiza a partir do controle popular sobre o processo de trabalho, nas diversas etapas do sistema agroalimentar. Como fonte bibliográfica para projetar tal estudo de caso, utilizaremos as seguintes referências:

A motivação central para o estudo desta abordagem educacional tem relação com a 3ª Edição do Curso de Aperfeiçoamento em Educação do Campo – Refazendo Caminhos na Região do Pampa, vinculado ao Curso de Educação do Campo da Unipampa.

Os textos de Francis, Cuadra e outros, refletem o percurso educacional em agroecologia levado a frente por educadores nos EUA e na Europa, com algumas parcerias situadas em países periféricos como na Nicarágua, Etiópia e Uganda. Os textos oferecem subsídios interessantes tendo em vista trataram-se de esforços que partem da agroecologia no embasamento de atividades formativas, cuja problematização envolve a fragmentação disciplinar que caracteriza a educação básica e superior.

Ainda que não partam de categorias marxistas, circunscrevendo a base teórica a partir de pensadores como John Dewey, faremos aqui uma leitura que mobiliza conceitos do próprio Marx e de pensadoras/es que nele desenvolvem suas sistematizações conceituais. A “complexidade” debatida em diversos interdiscursos acadêmicos faz parte da análise de Cuadra e Francis, como conceito necessário no estudo de sistemas agrários e alimentares. Para nós, compreendemos a complexidade como as múltiplas determinações que caracterizam os fenômenos percebidos em dada situação; a realidade é sempre atravessada por um conjunto de variáveis. No âmbito educacional, importa-nos ressaltar que os autores apoiam-se na perspectiva da aprendizagem experiencial de Dewey, questionando o tipo de aula essencialmente expositiva, centrada no professor e que desconsideram a integração entre nova aprendizagem e o conhecimento prévio dos estudantes.

O estudo isolado de componentes de um agroecossistema, por exemplo, impede que educadores e educandos percebam quais relações existem entre as reações de fotossíntese, resposta de cultivos aos fertilizantes, as relações econômicas de um dado produto, a idade média de agricultores em uma região, os processo de erosão nas áreas de declive, a luta pela terra em assentamentos, etc.. De fato, quando se conhece um agroecossistema para além de uma atividade pontual, percebemos que existe um grau de dependência entre estes fatores todos, e que para construir essa percepção é preciso configurar um contexto educativo que permita compreender que estas múltiplas determinações respondem a um sistema mais amplo, cuja interação fazem o trabalho agrícola funcionar bem ou não.

O estudo de caso em aberto, dessa forma, é apresentado como uma nova “paisagem educativa” que pode estimular professores e estudantes a caminharem por esse desafio. Esse caminho valoriza a abordagem sistêmica para a pesquisa e o ensino, e a agroecologia provê uma plataforma para construir os parâmetros acadêmicos para se estudar os componentes do sistema. Os autores ainda posicionam-se do ponto de vista da responsabilidade que a atividade educacional ganha nessa concepção, uma vez que a identificação de opressões sociais, econômicas ou políticas envolvidas na atividade produtiva deve nos levar a contribuir para sua superação, através da pesquisa ação, aprendizagem mútua e ação social coletiva e continuada junto aos sujeitos que partilham da mesma intenção.

A principal diferença entre o estudo de caso em aberto e o convencional estudo de caso, amplamente utilizado em cursos de direito, medicina, administração, é que o segundo, apesar de proporcionar uma aprendizagem baseada no mundo real, trata-se de uma estratégia educativa projetada para conduzir os estudantes em um passo a passo para descobrirem questões e solucionarem problemas que já estão postos e sabidos pelos professores. Em contraposição, o estudo de caso em aberto prevê um processo coletivo de trabalho entre estudantes, educadores e agricultores para imergirem em uma unidade produtiva, e em sua comunidade, para desvendar e descrever desafios presentes que ainda não foram superados.

O interessante é que na experiência dos autores, o estudo de caso em aberto foi utilizado tanto em atividades presenciais quanto em cursos pela internet, fato que nos alicerça metodologicamente nestes tempos de atividade remota. Em ambos os casos, o principal objetivo com estes estudos é promover melhor preparo de jovens profissionais para lidarem com as múltiplas determinações de um sistema e as incertezas que o futuro nos apresenta.

No âmbito da formação continuada de professoras/es, inspirada pela Educação do Campo, interessa-nos desenhar uma atividade pedagógica que instigue os profissionais da educação a refletirem sobre o ensino e aprendizado de questões sócio científicas, a partir da área de Ciências da Natureza. Entre os objetivos do estudo de caso em aberto na Educação do Campo, podemos citar:

  • identificar as ideologias políticas que direcionam o contexto educacional, a nível de gestão e de currículo;
  • instrumentalizar cursistas para o reconhecimento do entorno da escola, que passa por estabelecer contato com iniciativas, métodos, ações que providenciam melhor percepção sobre as múltiplas determinações que recaem tanto sobre os agroecossistemas da região como também sobre os outros níveis hierárquicos do sistema agroalimentar;
  • identificar pontos-chave da realidade estudada, vinculados aos componentes do agroecossistema estudado, no sentido de fortalecimento da agricultura camponesa e da autonomia do trabalho e do território;
  • identificar pontos-chave da realidade estudada, vinculados ao exercício do magistério, no sentido de estabelecer tanto os objetos de ensino quanto as dinâmicas pedagógicas nas quais eles se inserem, tendo em vista a integração entre as diferentes disciplinas, entre as diversas áreas do conhecimento escolar e entre o conhecimento científico/escolar e as práticas de conhecimento de outros sujeitos que atuam no território;

Os objetivos do estudo de caso em aberto, dessa forma, não apontam ou direcionam para uma solução pronta e acabada. Em contraste, os cursistas devem mobilizar o saber de suas experiências enquanto educadores para projetarem cenários educativos que respondam à necessidade de integrar escola e seu entorno, a partir da proposta político pedagógica da EdoC. Este exercício pode apontar também os constrangimentos que existem, em termos de política e gestão educacional, que impedem que tais cenários se materializem, apontando assim diretrizes de ação social coletiva.

Portanto, não temos a intenção, enquanto propositores da atividade, de prescrever uma sequência de ações didáticas ou políticas, mas providenciar uma plataforma que permita concebê-las coletivamente. Ou seja, pretendemos que o estudo de caso em aberto dispare inquietações educacionais nos cursistas, nas tutoras, nos professores do curso, a partir das quais possamos debater o potencial pedagógico de uma dada realidade previamente sistematizada e transformada em estudo de caso.

Uma proposta que podemos esboçar, para alavancar a aprendizagem mútua, passa por definir uma dada concepção de Ciências da Natureza e seus conceitos estruturantes na perspectiva da educação em agroecologia como matriz pedagógica da EdoC. Em linhas gerais, todo e cada sistema agroalimentar reflete um domínio cognitivo que organiza o processo de trabalho — a ação efetiva, seus objetos e seus meios, mobilizando recursos — matéria e energia — e organizando relações sociais de forma específica em cada etapa da cadeia/teia produtiva do sistema. Uma vez escolhida a diretriz curricular, mesmo que seja a BNCC, podemos eleger os conceitos a serem trabalhados na e a partir da realidade, com seu contexto e suas múltiplas determinações.

Os desafios a serem superados são grandes, e passam pela manutenção da agricultura familiar e camponesa e das escolas no campo, destinadas a atenderem suas populações. É com grande margem de incerteza que vivenciamos nossa prática educativa na Educação do Campo, e o estudo de caso em aberto proporciona um micro ambiente onde podemos ensaiar ações de resistência. Cada contexto tem suas fragilidades e suas potencialidades, exigindo de nós conhecermos os detalhes de cada realidade. As soluções são diversas e dependem da correlação específica de fatores existente na escola, na comunidade escolar, no ecossistema, nos sindicatos, nas políticas públicas, nos movimentos sociais, etc. Por isso a atividade educativa não deve estar centrada em nós professores, uma vez que os conhecimentos necessários para a elaboração das soluções educacionais não estão todos sob nossa “custódia”.

O estudo de caso em aberto, adjetivado com o termo “remoto” para adequar-se ao contexto da pandemia, ganharia maior intensidade se todos pudéssemos visitar pessoalmente o locus do estudo de caso. Não é o caso desta proposta. De todo modo, algumas técnicas utilizadas em estudos presenciais podem ser aproveitadas, tais como aquelas que orientam a organização das informações acessadas via estudo de caso. Os autores referem-se às metodologias participativas que facilitam tanto a captação de dados quanto sua análise exploratória, como entrevistas e contato direto com agricultores, análise FOFA (fortalezas, oportunidades, fraquezas, ameaças), entre outros métodos gráficos para visualizar e interpretar as condições sociais, técnicas e ambientais de uma unidade produtiva.

Os estudos de caso via internet são utilizados de diferentes formas, e normalmente apresentam-se através de livros virtuais ou mesmo documentos PDF. Seja nos livros ou nos PDFs, as informações aparecem através de uma combinação de texto, fotos, mapas, desenhos e até mesmo vídeos. A intenção destes materiais, que trazem exemplos de várias unidades produtivas, é fazer com que os estudantes aprendam sobre a complexidade inerente aos agroecossistemas, aproximem-se e interajam com os agricultores afim de identificar e propor alternativas aos problemas e dificuldades produtivas, assim como aproveitar as reflexões surgidas como um instrumento de aprendizagem.

O estudo de caso em aberto, da maneira como propõe os autores, enfatiza a perspectiva dialógica no processo de ensino e aprendizado, no qual as situações de uma realidade concreta são exploradas conjuntamente, proporcionando o levantamento de perguntas e respostas que não foram determinadas previamente.

Algumas adaptações devem ser feitas considerando o propósito do curso de formação continuada. Teremos apenas algumas semanas de trabalho conjunto com os cursistas, nas quais a questão das Ciências da Natureza na Educação do Campo devem ser problematizadas. O estudo de caso tem a função de qualificar estas problematizações e conduzir educadores e cursistas a projetarem possibilidades pedagógicas coerentes com a pedagogia do movimento e os complexos de estudo, por exemplo.