Planos e enquadramentos, luz e visão de mundo, ângulos e colheita de morangos orgânicos.

No dia 30 de outubro, uma quinta-feira ensolarada, iniciamos uma série de oficinas que serão realizadas na sede da Cooperativa de Agricultura Familiar e Agroecológica de Americana — Cooperacra. Até agora três oficinas foram realizadas e mais 7 estão previstas para os meses de novembro a fevereiro 2015.

As oficinas fazem parte das atividades de estudantes do curso “Residência Agrária — Educação do Campo e Agroecologia na Agricultura Familiar e Camponesa” (Feagri/Unicamp), e respondem à demanda colocada pelas agricultoras e agricultores da cooperativa. A Cooperacra, enquanto organização local para produção agrícola, já existe há 30 anos, e seus integrantes querem elaborar um registro audiovisual dessa trajetória que pudesse funcionar, também, como material de divulgação do trabalho que fazem na agricultura orgânica.

A tarefa envolve também a parceria do Laboratório Terra Mãe, um espaço de produção audiovisual da Universidade de Campinas que atua no desenvolvimento de novas linguagens que propiciem um melhor diálogo junto a comunidades de agricultores familiares, em especial dos núcleos de assentamentos de reforma agrária, comunidades ribeirinhas, comunidades quilombolas e populações moradoras em áreas de preservação ambiental, com a participação pró-ativa de alunos (de graduação e pós-graduação), pesquisadores, técnicos especializados e professores.

A trajetória da cooperativa se confunde com a vida da família de Seu João e Ana Clara, paranaenses que têm na bagagem a luta camponesa comum a tantos brasileiros país afora.

Nas poucas horas de trabalho junto ao grupo diversos elementos filmográficos surgiram, e o desafio passa a ser organizar as oficinas de forma que esses elementos venham a tona, sejam percebidos e dialogados pelo grupo todo. É esse grupo, composto pelas cooperadas e pela equipe do Residência Agrária, que assumirá a cadeia completa de produção de vídeo, desde a elaboração de roteiro, passando pela captação, encenação, até a edição do produto final — tudo bem orgânico, pra manter a coerência com campo ali ao lado.

Inicialmente as oficinas estão planejadas da seguinte forma:

  • fotografia/fotograma e planos/enquadramentos (1ª oficina);
  • manuseio de câmera (DSLR) e plano sequência (2ª oficina);
  • luz e som (3ª oficina);
  • elaboração de roteiro (4ª oficina);
  • pauta de gravação (5ª oficina);
  • intensivo de Teatro do Oprimido (6ª oficina);
  • captação (7ª e 8ª oficinas);
  • edição (9ª e 10ª oficinas);

A parte interessante do processo reside nas metodologias participativas e na educação popular. Afinal, a proposta é constituir uma experiência formativa em que os grupos populares se apropriem das tradicionais técnicas de filmagem. Isso significa que a técnica precisa ser digerida e desbastada, pois ela, a convencional técnica de filmagem e seu linguajar, não foi elaborada popularmente; ela (provavelmente) não responde e não é adequada ao modo popular de pensar e ver o mundo.

É, de certa forma, o que algumas pessoas dizem a respeito da prática artística: É necessário desfazê-la enquanto tal, como se fosse uma exceção às outras práticas, para que represente a reconfiguração e a partilha de todas as demais atividades — em nosso caso plantar, suar, colher, questionar, semear. Além disso, tem também o pensamento de Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, que ajuda a gente a saber que o teatro pode ser um instrumento de libertação, e para isso é necessário criar as formas teatrais correspondentes.

Essa “criação de formas” a partir de técnicas e procedimentos já existentes se aplica bastante ao que estamos fazendo na Cooperacra. Em suma, o trabalho está em popularizar (deselitizar) a capacidade de produzir sentidos socialmente visualizáveis para que nos inunde a “miríade do espírito criador do povo”, como já afirmou o cineasta cubano Julio García Espinosa.

Acho que é esse o desafio que temos pela frente nas oficinas, e penso que ele exige, de quem “puxa” * a oficina, uma postura diferente, exige a práxis da educação popular (aquela historicamente pontuada por Paulo Freire, Carlos Rodrigues Brandão, entre outros) que permite a releitura dos códigos em jogo para que a linguagem popular ganhe espaço e valor.

A tarefa não é simples, já que implica, paradoxalmente, o domínio sobre o conteúdo técnico convencional (opressor?), por um lado, e aquela sensibilidade (que a experiência prática é quem dá) capaz de encontrar no discurso popular os elementos transgressores que favoreçam a decomposição da técnica, de modo a fazer desta uma ferramenta útil ao desejo do grupo (oprimido?).

Certamente outras postagens surgirão, aqui no blog, sobre essa atividade que acontece em Americana-SP. E tudo caminhando nos conformes teremos, por volta do meio do ano que vem, um vídeo editado e pronto pra ser divulgado, produto desse processo bonito de participar.

* por enquanto as oficinas estão sendo coordenadas pela equipe universitária, mas essa situação pode (e, em alguma medida deve) ser alterada no desenrolar das atividades.


1 comentário

kellen · 19 de novembro de 2014 às 09:31

muito bom Marcelo!! incrível como as palavras fluem na sua redação. E que desafio delicioso tem sido este não é? É um prazer estar com este pessoal tão bacana, tão verdadeiro e não me refiro só ao pessoal de lá mas o de que cá também o do Residência… Podemos socializar com o pessoal da ACRA não? seria bacana postar umas fotos: é possível? abraço forte

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