Por Maíra Ribeiro
Em memória ao Massacre de Eldorado dos Carajás, dia 17 de abril é o dia nacional e internacional de luta camponesa. Assim, este mês é marcado por jornadas de lutas em todo o país, que denunciam a violência do modelo hegemônico estabelecido no campo, o agronegócio, degradante ao ser humano e ao ambiente. As jornadas de lutas incluem paralisações de rodovias e pressão para que o Estado através do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) realize seus deveres. Participarão também das mobilizações mais de quarenta universidades, com programação de palestras e debates sobre a questão agrária. O blogue de notícias da Articulação Xingu Araguaia (AXA) conversou com a Lucinéia Freitas, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) de Mato Grosso sobre este mês de lutas e a análise sobre a realidade e os desafios a enfrentar. Lucinéia apresenta que Mato Grosso é o estado mais violento no campo, em números proporcionais. Ela também aponta que dois pontos fundamentais para trabalhar são a sensibilização da população urbana aos problemas no campo e a unificação dos povos do campo, das águas e da floresta, e é enfática: para mudar, é preciso lutar. Leia abaixo a entrevista completa.
AXA – Neste dia 17 de abril de 2014 o Massacre de Eldorado dos Carajás, no estado do Pará completou 18 anos. Quais os legados de Eldorado dos Carajás?
LUCINÉIA FREITAS – O massacre deixou no momento 19 mortos e posteriormente mais três, num total de 22 mortes. Mas mais do que os mortos, que já seria um número assustador, sem contar os danos psicológicos dos familiares dos mortos, tem ainda os que ficaram mutilados. São entorno de 70 pessoas que ficaram de alguma forma mutilada, com balas alojadas no corpo, alguns ficaram deficientes físicos, por falta de atendimento do Estado em atender as vítimas do massacre em tempo de evitar maiores danos. Muitas pessoas só conseguiram atendimento médico depois de 1998, mais de dois anos depois do incidente. No dia do massacre em 1996, acontecia uma conferência internacional da Via Campesina e nessa mesma conferência, a Via Campesina declarou o dia 17 de abril como Dia Internacional de Lutas Camponesas. Então é uma data que no mundo inteiro, os camponeses fazem ações para lembrar que existe um grupo no campo que trabalha e que produz alimento, mas que é massacrado anualmente, cotidianamente pelo modelo do agronegócio. No ano seguinte ao massacre, em abril de 1997, o MST fez uma longa marcha no Brasil, a Marcha dos 100 mil, que chegou em Brasília com 100 mil pessoas. Por pressão inclusive dessa marcha e de outras lutas, em 1998, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso declarou esse dia como Dia Nacional de Luta Camponesa. Então, hoje é uma lei brasileira que o dia 17 de abril é o Dia Nacional de Luta Camponesa. Ele fez essa portaria tentando acalmar os ânimos, porque foi um massacre que ganhou muita repercussão na história, pela forma como ele foi feito, pela atuação do Estado, e também pela sua omissão.
AXA – Do massacre de Eldorado dos Carajás, houve justiça?
Até hoje, não tem ninguém preso, todos os policiais foram absolvidos, dos 155 policiais acusados, usou-se a desculpa de que eles seguiam ordens. Somente os dois comandantes que estavam dando as ordens foram condenados, mas também não foram presos. O crime foi julgado na esfera estadual, não foi para a esfera federal, quando o criminoso era o próprio estado do Pará. Porque era a Polícia Militar do estado cumprindo ordens do Secretário da Justiça do Estado, então teria que envolver no processo desde o governador que autorizou o secretário que deu ordem ao comandante que deu ordem para os policiais para abrirem fogo contra aquele grupo de pessoas. Houve participação de outros agentes, que o processo acabou não arrolando. Existe um material do Eric Nepomuceno que vai mostrar, por exemplo, que os ônibus que carregaram os policiais até ali foram financiados pela Vale do Rio Doce, que já era uma empresa privatizada e que passou como se não tivesse envolvimento. Então, o que a gente percebe no massacre é que foi uma ação orquestrada do capital para controlar o movimento que estava começando ali no estado do Pará. De ir lá no acampamento para fingir que queria negociar, reconhecer as pessoas que estavam coordenando o acampamento, para depois voltar e orquestrar o massacre. Uma característica dos 22 mortos é que todos eram homens e a maioria eram jovens, inclusive o Oziel Pereira tinha só 17 anos. É porque as principais lideranças do movimento no estado do Pará na época eram homens e jovens. Então, eles imaginaram que com esse massacre talvez eles encerrassem a luta lá. É daí que surge o mês de abril, que a mídia apelidou de Abril Vermelho, achando que com isso iria prejudicar a imagem de ser um mês de luto. Hoje a gente acaba usando também esse apelido que foi colocado principalmente pela Rede Globo, mas é um mês de luto e de denúncia dos massacres, pegando esse como exemplo mas evidenciando que todos os crimes cometidos no campo não são julgados e não é feita justiça nestes processos.
AXA – A violência no campo é um tema ainda bastante atual, mas parece que é invisível para a sociedade e para o próprio Estado.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) traz que dos mais de 1.500 casos de assassinato no campo no período da democracia no Brasil, menos de 70 foram a julgamento, menos de 11 tiveram o mandante condenado e ninguém está preso. Então, é muito crime para nenhuma punição e quando vai alguém preso, geralmente é o executor e não o mandante. O que deixa o mandante na impunidade, no sentido que ele pode seguir matando à vontade que nada vai acontecer dentro da Justiça brasileira.
AXA – E no caso de Mato Grosso, como está a questão da violência no campo?
Essa é uma reflexão que nós temos que fazer porque quando pegamos dados e aí vai ter o lançamento do Caderno de Conflitos no Campo de 2013 da CPT, que em Mato Grosso será no dia 30 de abril em Cuiabá, a gente percebe que a violência no campo não reduziu. Apesar de, nos últimos dez anos, não ter tido massacres, anualmente, os assassinatos seletivos que acontecem são muito altos. O número de conflitos com ameaças de morte, tentativas de assassinato é mais alto ainda. E quando a gente pegou o Caderno de Conflitos do ano passado, foi assustador, porque Mato Grosso é o estado mais violento no campo, em números proporcionais. Em número absoluto é o Pará, mas considerando a população rural do Pará e do Mato Grosso, nós somos o estado mais violento no campo. Isso é a marca desse processo de ocupação que a gente teve que sempre priorizou o latifúndio, e aí concordo com Dom Pedro Casaldáliga que latifúndio é latifúndio, seja produtivo ou improdutivo, ele é violento, mesmo os que hoje são chamados de produtivos. O latifúndio é violento, ele agride, mata, ameaça. Vivemos em um estado com um índice enorme de violência e com pouca visibilidade disso. A imprensa estadual não mostra, e quando mostra, tem que ter morte com crueldade e geralmente faz uma matéria muito superficial. Então, a gente tem os povos quilombolas sendo massacrados, os povos indígenas, os posseiros, os pescadores, os sem-terras sofrendo violência da ameaça do despejo, violência policial, violência de tentativa de assassinato. Temos o caso dos Retireiros do Araguaia, no fim do ano passado em Luciara/MT, com ameaças de morte e incêndio de casas de retireiros, e uma imprensa que fecha os olhos frente a tudo isso, não denuncia. Então, o mês de abril para nós tem um significado de denunciar que quem produz comida está morrendo, a cidade não pode ficar impassível frente a isso. O Estado tem que tomar uma ação frente a todos esses crimes. O Estado que é responsável por esses crimes, quando ele paralisa a reforma agrária, quando ele não demarca terras indígenas e quilombolas. Então, para nós o mês de abril tem esse significado.
AXA – Quais são então as principais ações da jornada de lutas do campo neste mês de abril?
Esse ano, a jornada de lutas não aconteceu no dia 17 de abril como todo ano acontece, porque foi um feriado e para nós, o importante da jornada de lutas é denunciar e mexer com o capital, então se nós fossemos fazer, por exemplo, com ocupação de rodovias federais no dia 17, estaríamos paralisando os trabalhadores que estariam saindo para um feriado merecido. Então, no Brasil, movimentos de vários estados fizeram essa mobilização no dia 15 de abril, paralisando as rodovias ou alguns centros urbanos por 21 minutos em homenagem a esses companheiros que morreram em Carajás, denunciando de que não nos esquecemos nunca desses companheiros tombados.
AXA – E aqui em Mato Grosso?
Aqui, a jornada de lutas ocorre nesta semana, começou na terça-feira dia 22 e vai até hoje, 25 de abril, com o nome de Jornada Unitária, com a participação do MST junto com vários movimentos ligados ao campo, como o MTA (Movimentos dos Trabalhadores Acampados e Assentados), a Associação 13 de Outubro, a CPT e outras associações. Então, tivemos trancamentos de rodovias na região sudoeste na entrada de Cáceres/MT, e também nas regiões sul e norte do estado. O MST do estado já faz estas mobilizações há mais de dez anos e desde o ano passado, começamos a fazer este processo de lutas conjuntas com mais unidade. Fora essa jornada agora, vai ter uma jornada de luta nacional no período de 28 de abril a 07 de maio. Aqui em Mato Grosso, o MST vai fazer a jornada no período de 05 a 09 de maio. Nesta jornada entram pautas nossas que já temos faz tempo, como assentar as famílias que já estão acampadas, liberar crédito para essas famílias, reconhecer os assentamentos que já estão há tempos com área decretada e até hoje não foram homologados, como o Assentamento Sílvio Rodrigues, na região de Cáceres e o 12 de Outubro, em Cláudia. A situação do assentamento 12 de Outubro é complexa porque ele vai ser atingido por uma grande Central Hidrelétrica que foi leiloada sem reconhecer a existência do assentamento e das famílias. Então, se as famílias assentadas forem atingidas, correm o risco de terem que sair da terra e não serem indenizadas. A garantia de que essas famílias sejam indenizadas é uma pauta importante. Outras pautas são denunciar o Judiciário que não julga os crimes e denunciar a violência contra os povos indígenas.
AXA – Como avalia o diálogo e ações do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) frente às demandas populares?
Tem um grupo em Cuiabá tentando articular com o INCRA para tentar encaminhar algumas questões práticas para assentados e acampados. É um problema sempre sério porque é ano eleitoral e a partir de julho não sai mais nada do INCRA e já é abril e eles não abriram o orçamento do ano, aquela coisa de sempre. Ou seja, quando abrir o orçamento vai ter um mês para fazer o que der para fazer, ou seja, nada, que é o que o INCRA vem fazendo nos últimos anos. Mas a gente sabe que é um problema da política do governo porque o Estado desmantelou o INCRA paulatinamente, de forma que foi deixando o INCRA sem espaço, porque a reforma agrária saiu da pauta do governo. A luta pela reforma agrária hoje tem uma problemática complexa, porque para o Estado e para o capitalismo em geral, não há mais necessidade de ter reforma agrária para responder as demandas que historicamente ela atendeu para o desenvolvimento do capitalismo, como ocorreu em outros países, de produzir comida barata para os trabalhadores, etc. Então quando o governo declarou há três anos atrás que não precisava mais de reforma agrária, de fato, ele paralisou e tem paralisado as ações neste sentido.
AXA – O que vemos é que o agronegócio está em expansão seja territorial, economicamente ou politicamente.
O agronegócio tem perspectiva de avançar, ele está atuando no Estado de forma acelerada e assustadora. Tanto junto ao Judiciário, e temos aí, as últimas decisões do TSF (Tribunal Superior Federal) que tem mostrado qual é o rumo do Judiciário, quanto do Legislativo, com leis que a gente tem que olhar com muita atenção. Algumas já foram aprovadas, como a alteração do Código Florestal, e que já querem alterá-lo de novo, e a gente está atento a isso. Tem o Código da mineração que eles conseguiram passar sem debate nenhum na sociedade. E outras legislações, como o Zoneamento Sócio-Econômico e Ecológico do estado de Mato Grosso, que está parado até hoje e nunca encaminhou. O projeto de lei de gestão do Pantanal, que está correndo e que será uma catástrofe se passar do jeito que está e que é de autoria do Blairo Maggi. E algumas leis, como a alteração do Código Penal, que não é diretamente do campo, mas que atinge diretamente todos os movimentos do campo. E a gente percebe que há essa articulação, tanto a partir do Legislativo como do Judiciário e no Executivo. Há uma aliança clara do governo da Dilma, da posição principal do PT, com o agronegócio. Três ações neste ano já mostram isso: a visita da Dilma em Lucas do Rio Verde, a indicação do Neri Geller para o Ministério da Agricultura logo após essa visita da Dilma e a visita do Lula junto com o Blairo Maggi à Cuba. Parece meio inocente esse processo, mas a intencionalidade dessas ações é muito visível quando acompanhamos o debate para a eleição do estado e nacional.
AXA – Dentro dessa conjuntura atual, quais os principais desafios enfrentados pelos camponeses e as principais bandeiras da luta no campo?
Pensando no processo de uma reforma agrária, a gente tem por desafio, fazer a denúncia das contradições desse modelo do agronegócio, que é um modelo que envenena. Em Lucas do Rio Verde, há dados colhidos e computados de estudos de várias universidades, como a UFMT e a Fiocruz, que mostra o grau de envenenamento do leite, do sangue, da urina, do ar e da água. Se esses estudos forem feitos em outras áreas onde o agronegócio também está alicerçado, os dados não serão muito diferentes, porque a tecnologia do agronegócio é a mesma. Então, um grande desafio nosso é conseguir debater com a população urbana sobre as contradições do modelo do agronegócio, da inviabilidade desse modelo. De como ele destrói a nossa perspectiva de futuro, porque se vai envenenando tudo, vai aumentando as pragas, vai diminuindo a biodiversidade, a nossa perspectiva de futuro no planeta Terra também fica quase inviabilizada. Outro desafio e que temos conseguido dar passos interessantes, é a construção da unidade da luta, porque quando o Estado conseguiu paralisar a reforma agrária, o capital voltou todas as suas forças contra os povos indígenas. Então, percebemos que de norte a sul do país, os povos indígenas tem sido extremamente violentados em vários processos, que vão da agressão física ao processo de incentivar preconceito e violência social. Frases como “índio bom é índio morto” tem sido divulgadas no Brasil como se isso fosse normal, que a gente pregue a violência contra um grupo. Então, a defesa dos povos indígenas, bem como a defesa de todos os povos do campo tem que ser parte integrante de todos os movimentos do campo. Essa construção de unidade nos permite dar um pouco esse olhar de saber que se a gente não se unir, o capital vai acabar com um a um até que não sobre ninguém no campo, além das grandes propriedades e dos pequenos agricultores que se integrem a elas. E quem fizer resistência, eles vão tirando. Acredito que hoje nossos dois principais desafios estão nesse sentido de construir unidade de luta de bandeiras e de solidariedade na defesa de todos os espaços do campo, os indígenas, os quilombolas, os pescadores, os sem-terra, os assentamentos de reforma agrária, e ao mesmo tempo fazer com que o cidadão urbano, tanto indivíduos como grupos civis organizados, participe no debate da contradição desse modelo, para que a cidade possa dar suporte para a luta do campo. Porque os povos do campo estão hoje em número muito pequeno. Então, está colocado o desafio. Para nós, temos a perspectiva de luta e essa é a única possibilidade: luta.
Imagens: Superior por divulgação MST/MT, inferior por Claudia Araujo
Publicada originalmente em 25 de abril de 2014 no blog de notícias da Articulação Xingu Araguaia (AXA)
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