Introdução

Caras e caros estudantes, sem bem vindos ao Texto Guia do componente! Esperamos que através desse texto possamos desenvolver da melhor forma possível nossos estudos e aprendizados nas ciências biológicas, avançando assim em nossa formação na Educação do Campo.

No segundo semestre do curso temos o primeiro componente diretamente vinculado aos conceitos das Ciências Biológicas: Construindo Conhecimentos de Biologia para o Ensino Fundamental. O mesmo acontece com as disciplinas de Química e Física. O desafio deste caderno é integrar a biologia ao segundo Eixo Temático. Para isso, identificamos algumas tarefas básicas.

Para melhor identificação dessas tarefas, colocamos abaixo a atual ementa da componente, confira abaixo:

Ementa

Biologia: campo de estudo enquanto ciência e componente escolar. Níveis de organização dos seres vivos: Célula – Tecido – Órgão – Sistemas – Organismos. A Biologia no currículo do Ensino Fundamental: aspectos teóricos, conceituais e práticos e sua contextualização com o campo.

Para conferir ementa completa, clique aqui.

Se no primeiro semestre da Lecampo o que se coloca como objeto de admiração são as identidades dos estudantes, assim como os processos sócio-históricos que configuram o trabalho camponês e o trabalho docente no Rio Grande do Sul, no segundo semestre o que se quer como percebido destacado são as mudanças sociais que impactam esses trabalhos. Veremos que essa intenção dialoga bastante com as competências e habilidades a serem trabalhadas na educação básica.

Nosso ato educativo, digamos, caminha no sentido de compreender a raiz cultural de condutas e práticas utilizadas nas comunidades e em seguida analisar os principais fatores que têm gerado mudanças nessas práticas, em especial aquelas relacionadas aos conhecimentos necessários para a qualidade de vida e trabalho nos territórios. É aqui que os contextos estudados fazem sentido na caminhada formativa.

A organização do trabalho no campo e do trabalho na escola, geralmente, são dois aspectos da realidade que se modificam quando novas tecnologias são incorporadas, quando novos eventos sociais ocorrem — como a luta pela reforma agrária, a movimentação que questiona a operação das grandes mineradoras, etc —, quando políticas públicas incidem sobre determinada comunidade, ou quando uma pandemia acomete o país e o mundo inteiro.

A atividade formativa da qual nosso componente de biologia faz parte está associada aos objetivos

(1) do Eixo Orientador constituído pela Educação do Campo

(2) do Eixo Temático e de seus componentes curriculares

(3) das Ciências da Natureza a partir dos conceitos estruturantes das disciplinas de Química, Física e Biologia e, por fim, aos objetivos

(4) de compreender a EdoC e as ciências da natureza em seu contexto educacional (políticas, marcos regulatórios, trabalho, etc.).

A tarefa das Ciências Biológicas passa por:

  • Submeter todo conteúdo da disciplina de biologia aos pressupostos da Educação do Campo. Isso significa que os conceitos estudados devem contribuir para que as populações do campo (e da cidade) tenham acesso à metodologia científica e aos conhecimentos assim produzidos, de modo que a apropriação desse método auxilie na transformação da escola e da força produtiva dominante envolvida na agricultura, apoiando um projeto de sociedade justa e igualitária;
  • Formar educadoras(es) do campo que colaborem na construção desse projeto. No segundo semestre da formação, essa colaboração passa pela capacidade de analisar seu contexto de vida e trabalho utilizando-se também de conceitos da biologia e de ciências da natureza, sempre articulados aos componentes curriculares das outras áreas do conhecimento (políticas públicas e gestão educacional, movimentos sociais e o campo, educação ambiental e prática pedagógica);
  • Constituir uma ideia comum de Ciências da Natureza, com as professoras de química e física, a partir de conceitos estruturantes dos componentes curriculares. Assim conjugada, as CN devem integrar a análise do contexto de vida e trabalho, permitindo aos estudantes interpretar a realidade de suas comunidades de forma omnilateral.
  • Analisar o trabalho docente na educação básica a partir dos pontos 1, 2 e 3 acima listados e articulá-las a documentos de referência, como a Base Nacional Comum Curricular, por exemplo.

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Contexto Biossocial

Não há descontinuidade entre o social, o humano e suas raízes biológicas. O fenômeno do conhecer é um todo integrado e está fundamentado da mesma forma em todos os seus âmbitos.

Humberto Maturana

Em nosso esforço de integrar ciências biológicas ao eixo temático, a frase de Humberto Maturana e Francisco Varela é muito significativa. O fenômeno social dos seres humanos pode e deve ser compreendido também desde a biologia. A vantagem de abordarmos as questões do eixo temático pela biologia é percebermos que as Ciências da Natureza têm muita relação com as questões econômicas, culturais e políticas de uma comunidade, de uma cidade, de um país e também do mundo.

A sociedade humana pode ser entendida como um nível de organização do vivo. Diversas espécies de animais recorreram, ao longo do tempo evolutivo, a esse tipo de organização para garantirem a sobrevivência de seus indivíduos, tais como as formigas, os cupins e as abelhas. Mas muitos outros seres também dependem de se juntarem em grupos para satisfazerem suas necessidades biológicas. Aliás, se é para atribuirmos algum juízo de valor ao fenômeno da vida, enfatizamos que ela, desde que surgiu no planeta há bilhões de anos, se caracteriza mais pela reciprocidade entre os seres do que pela competição, como prefere enfatizar o pensamento científico guiado pelo liberalismo e neoliberalismo.

O ensino de ciências entra no currículo escolar na segunda metade do século 19. Portanto, os conhecimentos de física, química, biologia e geociências passam a ser ensinados nas escolas em um contexto de disputa entre as forças imperialistas da Europa daquele momento histórico. Na visão da Inglaterra, Alemanha, França, EUA, era preciso que a classe trabalhadora adquirisse conhecimento a ser empregado na indústria. Havia uma competição entre estas nações por ampliar a produção industrial e disputar os mercados consumidores. Como sabemos, essa disputa competitiva culminou na Primeira Guerra Mundial, em 1914, início do século 20.

Naquela época, a biologia (e a antropologia) cumpriu um papel fundamental para a classe dominante e imperialista: criar um argumento científico que justificasse a manutenção da dominação e massacre da população negra e indígena, que já ocorria há 300 anos nos países colonizados como o Brasil. Esse argumento ficou conhecido como Eugenia. Através de atributos físicos e mentais, diversos cientistas defendiam a possibilidade e necessidade de um “melhoramento” da raça humana. Esse raciocínio está na base do pensamento nazista, a Eugenia Nazista e seus esforços por constituir uma “pureza racial”. Na Europa, a consequência dessa racionalidade culminou no chamado Holocausto, o assassinato em massa (genocídio) de milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939.

O conhecimento científico é datado, provisório e um dado cultural. Ou seja, responde às circunstâncias históricas, ao interesse de grupos e classes sociais, e pode ser revisto e atualizado a todo e qualquer momento.

Se a matança de judeus na Europa foi condenada pelas lideranças de todo o mundo, o genocídio de outros povos nunca ganhou a devida repercussão política. A resistência e luta do povo negro, indígena e de suas misturas permanece. Hoje a própria ciência já demonstra que a tese do melhoramento humano é uma mentira utilizada por interesse político e para desumanizar etnias compostas por pessoas não brancas. A herança dessa tese é o racismo estrutural que organiza as relações sociais da atualidade. A população dos países colonizados pelos europeus, até hoje, é tratada de forma desumana, sem acesso aos chamados direitos humanos, seja pelos dirigentes dos países imperialistas seja pelas elites de seus próprios países.

Infelizmente a população brasileira é igualmente vítima de um genocídio constante, pois a política orientada pela racismo predomina no país ainda que existam mecanismos legais que o criminalize. Em uma visão racista de mundo, a cor da pele, a etnia, aspectos da biologia das pessoas são critérios para dizer se um grupo social é ou não digno de humanidade, se pode ser alfabetizado, se pode ter acesso à educação ou participar da vida política e cultural de uma nação.

O mesmo podemos dizer de uma visão sexista de mundo, que determina atitudes ou comportamentos de discriminação e violência baseado exclusivamente no fato de alguém ser homem ou mulher. Dessa forma, pessoas do sexo feminino, por exemplo, sofrem severamente mais violência do que os homens apenas pelo fato de serem mulheres. Esse comportamento violento contra as mulheres é chamado de comportamento misógino, ou seja, um comportamento baseado na misoginia — na repulsa e/ou aversão às mulheres.

Portanto, a biologia participa da vida social de forma que a gente não percebe imediatamente. Temos a tarefa de correlacionar os conhecimentos e práticas da biologia com a realidade vivida por vocês em seus territórios, nos diversos níveis de organização da vida.

Níveis de organização da vida segundo a Biologia:

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Biologia e Educação

Com base nessa organização dos seres vivos, aos poucos compreendemos que a estrutura e o funcionamento do organismo — anatomia e fisiologia — determina a forma como ele interage com o meio. A capacidade de perceber as variações ambientais está determinada pelos tipos celulares do organismo, seus tecidos, órgãos e sistemas. Ou seja, cada organismo percebe o mundo de acordo com sua natureza biológica, cada organismo percebe, vê, sente o mundo de formas diferentes, tão diferentes quanto a variação biológica promovida pela evolução, pela seleção natural permitem.

Podemos citar, como exemplo, o sistema de percepção de alguns morcegos denominado ecolocalização. Como se fosse um sonar, ela ocorre quando o animal emite uma onda sonora que rebate em um objeto, produzindo um eco que fornece informações sobre a distância e o tamanho desse objeto. O morcego, portanto, “vê” o mundo através deste sonar, e não apenas através dos olhos. Já os olhos, são órgãos sensíveis aos raios luminosos, mas os animais que têm olhos não enxergam todos da mesma maneira, uma vez que em cada espécie varia a parte do espectro luminoso capaz de ser percebido.

Assim, podemos concluir que o morcego, os cães, os cavalos são seres que fazem coisas e vivem o mundo desde sua própria biologia, que conhecem o mundo a partir do que são. Nesse sentido é fundamental compreender a relação entre ser, fazer e conhecer, em especial para os seres humanos.

Há algo especial nos seres humanos nessa história toda, pois boa parte de nossos comportamentos, daquilo que nos caracteriza como humanos, ou seja, nosso viver, fazer e conhecer, depende de nossa biologia mas fundamentalmente de nossa cultura. Somos e estamos no mundo desde aprendizagens e trocas de conhecimentos que sempre tem relação com uma dada matriz sociocultural.

Eventos históricos como a colonização, escravidão, batalhas e resistências populares, industrialização, assim como os frutos da modernidade tecnológica como as máquinas, automóveis, celulares, modificam o cotidiano e a cultura das pessoas e das comunidades. Compreender estas mudanças e tomar consciência de como elas operam e alteram nossas vidas são tarefas do trabalho educativo, especialmente quando essas mudanças são conduzidas sem a participação popular, sem uma real democracia. Retomar a humanidade da população também é um trabalho educativo.

Nós e nossas famílias estamos inseridos dentro de um “mundo cultural”. Todo conhecimento humano pertence a um desses mundos e é sempre vivido numa tradição cultural, envolvendo linguagens, saberes e práticas transmitidas de geração a geração e que manifestam certa estabilidade ao longo do tempo. O primeiro Eixo Temático do curso enfatiza esse mundo cultural, através da Identidade e dos Processos Identitários dos estudantes e de suas tradições culturais.

Uma vez que a educação tem como matéria prima o conhecimento das pessoas, e se aceitamos a relação entre ser, fazer e conhecer, a biologia contribui com o trabalho educativo de inúmeras formas. O ponto de partida que queremos apresentar como tarefa desde as ciências biológicas é o seguinte:

O conhecer é o fazer daquele que conhece

Portanto, se aquele que conhece é aquele que faz, e se todo fazer depende de qual é sua biologia, sua estrutura biológica, é preciso então compreender o que é a vida, como se organiza e quais são suas estruturas. É a maneira de ser de um organismo vivo, em sua totalidade, que nos diz como ele é capaz de desenvolver os conhecimentos necessários para viver nas condições oferecidas pelo Planeta Terra e pela interação que se estabelece com outros seres vivos.

No caso humano, as condições de vida sempre dependem da organização social presente em determinada comunidade pois ela, a organização social, é uma continuidade de sua raiz biológica. Ou seja, a condição de vida das pessoas (saúde, bem estar, etc.) depende do Contexto Socioeconômico, Sociopolítico e Socioeducacional de onde vivem.

A biologia, nesse Eixo Temático do curso, será mobilizada para contribuir na análise do metabolismo social. Estudaremos conceitos das ciências biológicas que nos ajudam a analisar o contexto vivido pelos estudantes em suas comunidades, e em que medida ele corresponde às necessidades biossociais de sua população.

Veremos que a satisfação dessas necessidades dependem de conhecimentos produzidos pelas práticas inseridas no cotidiano de vida, sejam elas práticas relacionadas com o auto-cuidado, alimentação, com o trabalho ou com a organização comunitária.

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A organização do vivo

Como saber quando um ser é vivo? Ao longo da história da biologia diversos critérios já foram propostos. Esse dado já nos mostra a dificuldade que a ciência tem em definir o que é e o que não é algo vivo. A pandemia do coronavírus Sars-cov-2, que causa a doença Covid-19, nos mostra essa dificuldade: alguns materiais de divulgação científica para a população enquadra o vírus como uma entidade não viva; outros, pelo contrário, vão afirmar que o vírus faz parte da classe de entidades que chamamos “seres vivos”.

Algumas pessoas na ciência propuseram que o critério fosse a composição química, ou a capacidade de se movimentar, ou ainda a reprodução. Ou, por fim, alguma combinação de critérios, uma lista de propriedades, tais como:

Características Ser Vivo

Célula como a unidade básica da estrutura e do funcionamento da vida. Existem organismos que possuem apenas uma célula (unicelulares) e outros que possuem diversas células (multicelulares);

Ciclo de vida dos organismos que envolve nascer, crescer, reproduzir e morrer;

Participação no processo de Evolução, que são as mudanças ao longo do tempo que garantem às espécies a sobrevivência nos seus ambientes e a manutenção de seu ciclo de vida;

Metabolismo que envolve um conjunto de processos e reações químicas no interior das células. O metabolismo celular é a manifestação das mudanças evolutivas dos seres para satisfazerem suas necessidades vitais. O metabolismo é o processo que realiza a mediação entre o ser vivo e seu ambiente. Ele está relacionado, por exemplo, à aquisição de energia necessária para toda a atividade da vida.

Todos os seres vivos possuem Material Genético, como o DNA ou o RNA. Estes materiais orientam o metabolismo de cada organismo e estão relacionados com a hereditariedade, pois o material genético transmite as características de uma geração para outra.

Baseado nessa lista, o vírus não se enquadra como ser vivo uma vez que ele não têm célula nem um metabolismo celular que garanta, por exemplo, reproduzir-se por conta própria. Como sabemos os vírus, para se reproduzirem, necessitam do metabolismo celular de outros seres, como uma bactéria, planta ou animal.

Talvez os vírus sejam considerados vivos em uma outra proposta, aquela que afirma que seres vivos são aquelas entidades capazes de produzirem de modo contínuo a si próprias. A menos que “produzir a si próprio” necessariamente implique possuir uma estrutura celular ao invés de controlar os componentes de outro organismo. A capacidade de produzir a si mesmo envolve todos os componentes moleculares de uma célula, que estão dinamicamente relacionados em uma rede contínua de interações entre eles mesmos e com o meio onde a célula se insere.

O conjunto destas interações, o metabolismo celular, é a rede de transformações químicas que satisfaz as necessidades do organismo, tal como aproveitar os nutrientes obtidos para gerar energia utilizada em seu ciclo de vida, proteção contra as intempéries do ambiente e contra predadores, reprodução para que a espécie siga presente no planeta, e condições de realizar os processos vitais de regulação que mantém o organismo em constante equilíbrio, ou seja, manter sua homeostasia.

O metabolismo celular produz os componentes que tornam possível sua própria existência, como por exemplo o componente que forma uma fronteira que delimita um espaço “interior” e um “exterior”, a chamada membrana celular.

Curiosamente, a membrana não apenas limita a extensão da rede de transformações que a produz, como também participa dessa rede. Ou seja, o metabolismo é a condição de existência da membrana e a membrana é a condição de existência do metabolismo que a produziu, formando a unidade da vida.

A célula, assim, se torna a unidade básica da vida a partir dessa inter-relação entre metabolismo e membrana. Isso é particularmente importante pois ela nos mostra que a vida surge pela capacidade de se distinguir do meio por si mesma. Essa autoconstituição é o que caracteriza a organização de todos os seres vivos do planeta. A diferença entre cada espécie não está, dessa forma, em sua organização mas sim em sua estrutura.

O vivo é um sistema cuja organização tem como produto ele mesmo, ou seja, todo ser vivo faz o que é e é o que faz. Essa inseparabilidade entre ser e fazer nos ajuda a compreender a frase anteriormente destacada: o conhecer é o fazer daquele que conhece. Ser, fazer e conhecer, portanto, é uma propriedade que se manifesta a partir da organização dos seres vivos.

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