A arte não vai desaparecer no nada.
Vai desaparecer no todo.
Julio García Espinosa.

Desestrangeirizações; Tornar iminentes aqueles que desafiam nossos modos de percepção e significação, tornar miscíveis confrontos em encontros que gerem entrelugares culturais, sensíveis. Destoar a prática artística como exceção às outras práticas e versá-la como representação da reconfiguração e da partilha de todas as demais atividades [60]

sabot2À educação e aos saberes o rearranjo material de signos e imagens, a sabotagem de toda verdade que seca bocas e apaga pensamentos. Uma pedagogia da insustentabilidade dos limites a priori, uma pedagogia de múltiplas ontogêneses que rompa com a intolerância das razões etno, antropo e falocêntrica. Um cinema que articula expressões e reivindica singularidades, uma nova poética que em essência se desaparece como nova poética, um gênero ou outro ou todos.

Um cinema imperfeito que é pergunta e é resposta, autopoiético de mil flores distintas. Imagem recursiva que escapa à dicotomia sujeito-objeto e assume interações em simultaneidade, caóticas. Autogestão de linguagem que se faz na relação autogerida entre o que se vê e o que se diz, o que se faz e o que se pode fazer. Confecção de vetores de subjetivação tão diversa quanto é o universo de referência popular, miríade do espírito criador do povo.

Cinema imperfeito às bandeiras ideológicas maniqueístas [61], autodeterminado em expressar subjetividades distendidas e distanciadas da norma, que encampe objetivos unificados sempre que atrase a usinagem subjetiva da mídia. Cinema pedagogo capaz de inventar outros mediadores sociais, que dá vazão à existência humana em novos contextos históricos e às práticas que modifiquem e reinventem maneiras de ser no contexto campo-cidade; que engendra modalidades do ser em grupo numa urbanidade camponesa.

Essas linhas ensaiam o roteiro que pretende pensar com a educação e a divulgação o exercício de linguagem audiovisual num regime que tem referência popular; um recorte apenas, uma delimitação do que se pode produzir no sentido da comunidade: Um quarto de memória inventada, a partilha do dizer de um arquétipo folclórico, elemento criativo manifesto e incontido dos povos, arte ao avesso e em desdobra que por isso deixa de ser celebrativa e demagógica para se tornar pulso do agora, memória irrequieta do que será, futuro brincante e ilocalizável, folia folklorica das miudezas de rua.

Se o quarto é de invenção, pensemos novamente na experiência da campanha “Uma kombi para as mulheres da AMA” e os contornos antes traçados, e reinventaremos sobre o que foi pra fazer clarões aos entendimentos e caminhos; não mais que isso, caminhos.

Talvez essa postura valha pela assunção de que a educação visual se dá num processo, num dado contexto de forte influência do senso comum, mascaramento da imagem em mera réplica e atestado de verdades em cujas armadilhas por vezes caímos, por vezes deflagramos… ou por vezes assumimos tais funções imageadoras e delas lançamos mão para demarque político, ainda que restrito se pensarmos as possibilidades que elas possuem. Também contradizemos, também fornecemos certa fixação no jogo da(s) verdade(s) talvez apostando que retorcer a vara noutra curvatura possa abalar alguma retidão… até que o demarque seja cooptado e nosso reducionismo exposto.

As cenas de arquivo de atos do MST reproduzidas na tela da Rede Globo, não para escárnio, mas para afirmação de enredo da vida de Ileide (integrante da AMA), surpreendem. Independente de qualquer afirmação acerca da linha política da emissora o quadro em questão ou conta com certa autonomia ou certa ousadia em escolher os elementos narrativos para reforçar o assistencialismo ao grupo de mulheres.

huckclique na imagem para ver o programa

De qualquer maneira a contraposição política não se desfaz, nem apesar do desejo satisfeito das mulheres e nem pela satisfação expressa de algumas pessoas pela plasticidade das imagens do vídeo Queremos uma Kombi. Em algum grau (ou muitos) a narrativa do vídeo conversa com o que representa Luciano Huck; em algum grau a linguagem proposta não rompe com o que se sente divergir, e a lança do incômodo não arrefece e provoca ainda mais a vontade de um cinema imperfeito que desestabilize, até a nós mesmos.

Assumir a videteatrografia teria então algumas proposições. Ela instauraria dispositivos de subjetivação que operem com delicada violência os elementos identitários, reformulando-os e impactando o processo mesmo de formação de grupo, no caso da AMA, e atualizando disposições políticas, rastreando resistências: quem mesmo nós somos? Movimento necessário de repartilhar sentidos coletivos e territorializantes. A videteatrografia poderia inundar de singularidades o roteiro, que direcionado a etnoficções pudesse reificar o grupo. No contexto de movimentos sociais, esse viés propositivo se alicerçaria nalgum “núcleo de comunicação e artes”.

Durante a oficina do sensível em que as mulheres simulavam (reificavam) a lida com a burocracia discriminatória de um agente bancário, surgiu a ideia de eleger um elemento de vestuário que pudesse representar uma ou qualquer mulher do grupo frente ao guichê. Oferecendo uma maior consequência a este fato para a concepção de um novo roteiro, algumas sequências poderiam ter sido rodadas, as quais projeto nos próximos parágrafos.

As imagens que as chamadas agriculturas populares projetam – intencionalmente ou não –,
seus en-signos talhados ao fogo da lembrança nas rotinas muito nossas, fagulhando desde dentro 
pelo miolo do íntimo sem que apercebamos, fazem proliferar memória recorrente, imorredoura.

Rotina e memória imorredoura… dois fatos de campesinidade que poderiam suportar o elenco de percepções para o roteiro. Na oficina em questão, a peça de veste utilizada para compor o comum no grupo foi um xale, mas para o roteiro aqui inventado poderia ser uma pulseira, ou um anel. Talvez o anel pudesse representar melhor a proposta, e então as rotinas a serem enquadradas se passariam como de mão em mão por entre as personagens; sons e vozes de brincadeira passa-anel se misturariam pra compor relações entre “signos talhados ao fogo da lembrança” e “rotinas muito nossas”. Imagens lá e cá que fossem tecendo uma atmosfera atemporal – quando tudo isso se passa? Quanto da brincadeira de infância mora no hoje – não apenas sua efetivação nas calçadas das ruas ou no banco de praça, mas da vida mesmo das reminiscências que tais imagens poderiam suscitar. A infância é, enfim, cabível em todo minuto e pode ser planta miúda em fenda de toda sorte.

Vozes coletivas de quem são far-se-iam com imagens que repassassem de gesto em gesto das mulheres por sobre um enredo estabelecido com rotinas que elegessem. O traçado do repasse nos conduziria ao desvelo de intimidades expostas: vincos de pele, aro de óculos, chama de um fogão… repouso de mão na enxada, caixote que acolhe à cenoura; a lamúria do motor de um veículo, o canto de boca que afaga palavras ao neto… todos personagens emaranhados de inextricável discursividade, voracidade na paz de uma colher de pau repousada sobre a mesa que (a)guarda o refogo dos almoços.

Não interessa quem. A presença do anel ou de sua representação marca o enredo comum, que se faz na simultaneidade do contraste e da similaridade entre as presenças – gente, objeto, sonoridade, animal, reflexo, paisagem, planta… linha desnovelada que não termina e nem pontas tem, coisas todas da terra e do alimento que inspira mais a ideia de fios dentro de fios, semente da semente – as sementes são como retratos condutores de ancestralidades, de infinitos detalhes, mas se preenchem de uma consistência monstruosa pois carregam em si o padrão de sempre: terra, germe, broto, planta, semente e gente. Pontualizações de uma verdadeira imagem fractalizada: condutores de ancestralidades no mesmo retrato de múltiplas escalas – fractais camponeses, fractais do pensamento mais forte que o lugar, fractais de sertão desmorrido.

E tal qual o anel que se carreia em mãos, tal qual a criança que nos mora e que nos carreará, a campesinidade vai se destilando e desmorrendo, ela mesma carreada pela imortalidade de tuas lembranças. E o medo de morte superado daria espaço para um ninar qualquer, alguma canção capaz que nos embale o sonho de amanhã, pois o amanhã inevitavelmente corporificará de novo o mesmo medo refeito em outra rotina, nova de sempre.

E o roteiro já teria avançado por sobre a margem do asfalto, luz camponesa que alumia urbanidade flagrada ou velada nos detalhes da tradicional rotina das mulheres ou das carroças ou dos pertences. E os azuis cor de terra já tonalizariam as sensações… São pessoas que são em trânsito, mulheres, mulher: ela mesma encarne de campesinidade transitória, por onde passa leva e deixa, arrasto e marcas. As oficinas do sensível teriam o papel de “sobremergir” os afetos e perceptos das visões desta itinerância ao redor de seus mundos. A aposta é de que elas e as presenças de seus cotidianos portem as cenas que singularizam forças viventes, geografias de contato com a vasta campesinidade que dormita em caos cujo encarne em gente e coisa por vezes a realiza.

E seriam estas cenas que, concebidas e eleitas em conjunto, poderiam compor a obra. Dois regimes de imagens estariam presentes, cujo balanço entre eles dependeria dos gestos e impressões que advierem da corporeidade nas oficinas – espaços estéticos que tornariam o espaço físico em que estariam fluído e fugidio, dicotômico. O enredo seria a reprodução não fiel de um dia que se passa entre as presenças que envolvem e estão envolvidas pelas mulheres. Mas as oficinas ofertariam uma duplicidade neste “dia”; este se daria em dois tempos (ou mais), um que transcorre “normalmente” por entre seus afazeres e torna-se passado, passado “útil” que passará a ser reificado em oficina e forjará o outro tempo, ou outros tempos.

montagem_semeador_inverso2.jpegTeremos videografado um eu e seu passado, o eu-antes; teremos dois eus, um que viveu a cena e outro que a conta. Essa revivência simultaniza um eu e um não-eu numa relação que separa e aproxima, e cria a necessidade de escolha, será ela o eu referente ou o eu que se refere? Ainda que seja uma alternativa aparente – pois que o narrador é mais abrangente que o narrado – essa nova abrangência fornece um hiato de alternativa e amostragem de possibilidades, mais até do que as que foram encenadas. Nesse aspecto teríamos um tema para o roteiro, mas esse poderia se re-roteirizar em novos traçados, novas presenças protagonistas: “o importante não é a mera entrada do corpo humano em cena, mas sim os efeitos dicotomizantes do espaço estético sobre esse corpo e sobre a consciência do protagonista que, em cena, torna-se sujeito e objeto, torna-se consciente de si mesmo e de sua ação.” [62]

Nesse movimento então, poderiam as sensações e sentimentos criarem roteiro e conduzirem as filmagens subsequentes, pra enredarem imagens que caibam numa discursividade que pretende camponesa, tende a ela mesmo sem nunca chegar. Uma discursividade fecundada pela semente etérea que é a campesinidade; fecunda em queda pois que se desmancha ao toque de chão, se desmancha no todo… se faz terrena?widget7

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