Recentemente, por conta da participação na disciplina de História e Filosofia das Ciências (1) que estou cursando, tive contato com essa área do conhecimento, que em inglês usa a sigla MLE — media literacy education. Além dessa do título, outra tradução poderia ser Educação em Literacia Midiática, já que “letramento” e “literacia” são tidos como sinônimas para o dicionário Houaiss. Mas conversando com Rodrigo Botelho, professor da área na Universidade Federal do Paraná, as palavras “alfabetização” (outra possível tradução para literacy) e até mesmo “letramento” passam a ideia de que seria uma prática educativa partindo do “zero”, quando, no entanto, todos nós já temos uma longa estrada no tema. Afinal, são horas e horas gastas entre filmes, séries, tv, facebook, livros, youtube, novelas…

De fato não somos tábula rasa no assunto. A extensa dedicação que socialmente é dada aos meios de comunicação de massa (entre outros) nos preenche de aprendizagens e significados, somos portadores e reprodutores das inúmeras mensagens transmitidas por esses veículos, alguns de nós somos especialistas — bem mais do que alfabetizados — ao dissertarmos sobre os assuntos que circulam na novela das oito. Ou no Big brother, ou no Porta dos fundos, ou no… qualé a atração do momento? Mas, certamente, temos pouquíssima sabedoria do que se passa no Observatório da imprensa. Não conheço tanto assim o programa, nem pretendo ficar jogando confetes, mas trata-se de um conteúdo televisivo único em seu gênero: analisar “de forma crítica o desempenho da mídia a partir de assuntos que estão em destaque na imprensa.”. Creio que sabemos pouco analisar a mídia no conjunto de suas características, que envolve formatos, conteúdos e mensagens.

Essa é a distinção a que se propõe a Educação em Letramento Midiático: educar sobre a comunicação de massa, e não apenas educar através dela. O foco deste letramento está tanto na elaboração do material midiático quanto na mensagem que ele transmite. O Letramento Midiático reúne cinco ideias centrais:

  • Toda mídia é construída com propósitos específicos para específicos públicos;
  • Mídia constrõe (e é construída por) representações da realidade;
  • Indivíduos interpretam os significados das mensagens individualmente;
  • As mensagens da mídia têm implicações sociais, políticas, estéticas e econômicas;
  • Cada tipo de comunicação possui características próprias.

É bem fácil de se encontrar exemplos na área de educação utilizando mídia (impressas, visuais, digitais) para se abordar um assunto qualquer, mas arrisco dizer que é pífio o esforço pedagógico (com base teórica e metodológica) para tomarmos consciência de que toda mídia é socialmente construída. Eu mesmo, no que existe de prática educativa em minha trajetória, poucas vezes aprofundei sobre a mídia utilizada, permanecendo no através. Coisas da era da comunicação, num contexto em que ela, a comunicação, tranquilamente poderia ser interpretada como um dos mais poderosos instrumentos de pacificação (anestesia) social, invisibilizando os principais conflitos e contradições da (des)ordem que nos rege a existência. Tem responsabilidade grande, também, a comunicação de massas nas distorções propagadas quanto à natureza da ciência e ao trabalho dos cientistas. A produção do conhecimento acadêmico é uma atividade socialmente localizada, está permeada por influências políticas e expressa a visão de mundo de um determinado grupo de pesquisadores. Mas a comunicação de massas, importante mediadora de nosso cotidiano, permanece propagando uma suposta neutralidade das relações entre ciência e tecnologia, permanece disseminando que a sistematização científica do conhecimento humano é uma atividade para poucas pessoas, “iluminadas” por uma inteligência fora do padrão(2). Um equívoco bem conveniente que alimenta as relações de dominação, e que esforços feitos pela Educação do Campo, por exemplo, evidenciam esse erro ao criar as condições para que os trabalhadores do campo também elaborem produções científicas.

Ainda que, coletivamente, tenhamos pouca consciência acerca da intrínseca elaboração sociopolítica onde inserem-se a produção das mídias que hoje nos tocam, nos movem, tive a oportunidade de experimentar, em sala de aula, o que propõe a Educação em Letramento Midiático (ELM), ainda que naquele momento da experiência eu ainda não conhecesse seus princípios. “A ELM incentiva a audiência a compreender que os autores(as) das mídias escolhem o que mostrar-nos e evidenciam alguns elementos enquanto ignora outros.”(3). Talvez essa tenha sido a principal característica do uso que fizemos dos vídeos “Queremos uma Kombi” e “Dona Ileide ganha uma forcinha para produzir alimentos orgânicos“. O primeiro vídeo é uma produção em que fiz parte da equipe, concebido conjuntamente com a Associação de Mulheres Agroecológicas do Vergel (AMA) e a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Unicamp (ITCP). O segundo vídeo, por conta da repercussão do primeiro, exibe a participação da AMA no programa “Caldeirão do Huck”, da Rede Globo.

Utilizamos esses vídeos em um curso de aperfeiçoamento para professores do campo da região de Diamantina, em Minas Gerais (Educação de Jovens e Adultos no Campo com Ênfase em Economia Solidária), oferecido pela Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). O propósito da aula era problematizar quais princípios pedagógicos são necessários para lidar com os temas do curso (Educação do Campo e Economia Solidária), reconhecendo as relações entre educação, visão de sociedade e transformação (ou manutenção) social.

Havia um desafio interessante na aula, que implicava justamente encontrar as formas adequadas para se utilizar os vídeos ao mesmo tempo que pretendíamos sensibilizar a turma para as relações conceituais inicialmente planejadas. Ou seja, era preciso, pelos vídeos, reconhecer as distintas visões de mundo e de sociedade a partir do contraste entre as duas narrativas audiovisuais. Esses contrastes foram fundamentais para discutirmos os três eixos de análise, propostos pela Educação do Campo, envolvidos na atividade agropecuária: a organização do trabalho produtivo, as dinâmicas socioculturais e suas relações agroecossistêmicas e, por fim, como se dá a produção, reprodução e legitimação do conhecimento envolvido no mundo rural.

Na escrita desse post, tive a oportunidade de correlacionar elementos teóricos e práticos entre a aula no curso de aperfeiçoamento e o trabalho de conclusão de curso redigido por conta da especialização no Residência Agrária. Na verdade, esses parágrafos se inspiraram no trabalho final da disciplina do doutorado, uma apresentação que fiz pelo Prezi adaptando a aula em Diamantina com a finalidade de discutir elementos de história e filosofia das ciências para elaborar uma aula no âmbito do Ensino de Ciências. A apresentação abaixo reproduz o conteúdo desse post, partindo da caracterização da proposta, a atividade em si com os vídeos e algumas considerações finais:

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O último quadro da apresentação finaliza com uma provocação. Se os vídeos “Queremos uma Kombi” e “Dona Ileide ganha uma forcinha” produzem significados sociais para a Associação de Mulheres, que significados produziriam/produzem essa associação para todas as outras coisas, inclusive para as formas como essas produções audiovisuais são realizadas? O vídeo “Queremos uma Kombi” possui alguns traços, em sua elaboração, que apontam ou indicam caminhos nesse sentido. As mulheres estiveram presentes nos principais momentos de tomada de decisão quanto ao enredo e roteiro do filme, apontaram as diretrizes para a edição e linguagem final do vídeo.

AMA_veCreio que já são elementos distintivos se comparados às outras produções audiovisuais, em especial as televisivas e jornalísticas. Por outro lado, experiências como essas indicam que o caminho para aprofundamentos desse tipo ainda é bem longo, de modo que os grupos populares estão longe de possuírem as condições materiais e intelectuais que os permitam expressar e divulgar de maneira mais ampla (ainda que “apenas” nas redes sociais da internet) a simbologia que oferecem às coisas do mundo. Nossos olhares para a vida cotidiana permanecem sob custódia e isso fica bem evidente se aceitamos a ideia de que nossa relação com o mundo se dá de forma simbólica e política, de que nossa posição de sujeito está constituída pela linguagem, pelas marcações ideológicas e pelo inconsciente coletivo.

Nossa compreensão a respeito de coisas do tipo “como organizar a produção agropecuária” está restrita ao que pensa meia dúzia de corporações privadas. Esse contexto implica numa determinada “configuração” de Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA) e de políticas públicas para o setor. Ao mesmo tempo que o Agronegócio (organização hegemônica da produção rural) se vale de parte do conhecimento científico, outras bases científicas são completamente desprezadas (e desmerecidas), inclusive — e principalmente — aquelas que fazem a necessária crítica quanto às severas consequências socioambientais do Agronegócio.

Perceber essas fragilidades na organização social nos aponta ações no campo da educação e da comunicação. Os aportes da História e Filosofia das Ciências mostram-se fundamentais para desconstruírmos os mitos em torno do conhecimento científico, em especial aqueles relacionados às tecnologias “de ponta”. Complementarmente, a comunicação de outras formas de se produzir e legitimar o conhecimento também precisa ser ampliada. São ações sociais que relacionam novas teorias pedagógicas, democratização da comunicação e soberania alimentar no país. Desafios significativos que diversos movimentos de resistência vêm assumindo como temas de trabalho, e que temos a responsabilidade de conhecer, apoiar e disseminar (4).

 

Notas

1. A sigla da disciplina é EC-710, oferecida no Programa de Pós-Graduação Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM-Unicamp) e coordenada pela Professora Silvia Fernanda de Mendonça Figueirôa.

2. Vejam dois artigos abordando o papel da comunicação de massa na divulgação de ciência e as mais frequentes distorções identificadas na sala de aula: Reflecting on Scientists’ Activity Based on Science Fiction Stories Written by Secondary Students. Artigo da Revista “International Journal of Science Education” de 2007 (Tradução livre: Refletindo sobre o trabalho de cientistas a partir de histórias de ficção científica escritas por estudantes do Ensino Médio”); Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Artigo da revista Ciência & Educação, de 2001.

3. Science Teachers’ Use of Mass Media to Address Socio-Scientific and Sustainability Issues. Artigo da Revista “Science Education” de 2012 (Tradução livre: “Uso da comunicação de massa por professores de ciências para tratar de assuntos sóciocientíficos e de sustentabilidade”).

4. Articular e colocar em rede essas ações sociais pode ser uma das definição da Plataforma Sementeia, que também fortalece ações e resistências de outras naturezas: http://sementeia.org/