Introdução

Essa página está associada ao Caderno de Estudos nº 2, instrumento pedagógico do curso de graduação Educação do Campo – Unipampa e do regime de alternância que caracteriza o aprendizado em duas etapas: Tempo Universidade e Tempo Comunidade. A escrita é voltada para a leitura e estudo de acadêmicos do segundo semestre. Dessa forma, entendemos que esse texto complementa o caderno de estudos do Eixo Temático 2: Contexto Socioeconômico, Sociopolítico e Socioeducacional.

No segundo semestre do curso temos o primeiro componente diretamente vinculado aos conceitos das Ciências Biológicas: Construindo Conhecimentos de Biologia para o Ensino Fundamental. O mesmo acontece com as disciplinas de Química e Física. O desafio deste caderno é integrar a biologia ao segundo Eixo Temático. Para isso, identificamos algumas tarefas básicas.

Antes de apontar tais tarefas, apresentamos algumas orientações oferecidas pelo caderno 2, que estabelece como propósito desta etapa do percurso de aprendizado “subsidiar reflexões em torno das grandes mudanças sociais relacionadas ao trabalho camponês e, também, o docente“.

Se no primeiro semestre o que se coloca como objeto de admiração e readmiração são as identidades dos estudantes, assim como os processos sócio-históricos que configuram os domínios de comportamento das diferentes matrizes socioculturais presentes no Rio Grande do Sul, no segundo semestre o que se quer como percebido destacado são as grandes mudanças sociais que impactam tais domínios. Veremos que essa intenção dialoga bastante com as competências e habilidades a serem trabalhadas na educação básica.

Nosso ato educativo, digamos, caminha no sentido de compreender a raiz cultural de condutas e práticas utilizadas nas comunidades e em seguida analisar os principais fatores que tem gerado mudanças nestas práticas, em especial aquelas relacionadas aos conhecimentos necessários na dinâmica produtiva e reprodutiva dos territórios. É aqui que os contextos estudados fazem sentido na caminhada formativa.

A organização do trabalho no campo e do trabalho na escola, geralmente, são dois aspectos da realidade que se modificam quando novas tecnologias são incorporadas, quando novos eventos sociais ocorrem — como a luta pela reforma agrária —, quando políticas públicas incidem sobre determinada comunidade, ou quando uma pandemia acomete o país e o mundo inteiro.

Para captar e interpretar estas modificações, uma das atividades que vocês estudantes devem realizar no Tempo Comunidade é uma análise de conjuntura: pesquisando, destacando e descrevendo os acontecimentos de relevância; as tramas sociais e os cenários em cada comunidade tendo em vista a orientação neoliberal da atualidade; os atores e suas ações/intenções que se manifestam nas demandas políticas e nos projetos almejados na cidade e região; as relações de força e as disputas de poder presentes em cada cenário.

O resultado deste esforço de pesquisa, destaque e descrição devem resultar, efetivamente, na análise que relaciona conjuntura e estrutura e configura a relação entre educação e sociedade, educação e movimentos sociais, e nos ajuda a compreender o trabalho docente que é realizado nas escolas ou em outros espaços educativos.

A atividade formativa da qual nosso componente de biologia faz parte está associada aos objetivos (1) do Eixo Orientador constituído pela Educação do Campo, (2) do Eixo Temático e de seus componentes curriculares, (3) das Ciências da Natureza a partir dos conceitos estruturantes das disciplinas de Química, Física e Biologia e, por fim, aos objetivos (4) de compreender a EdoC e as ciências da natureza em seu contexto educacional (políticas, marcos regulatórios, trabalho, etc.)

A tarefa das Ciências Biológicas passa por:

(1) Submeter todo conteúdo da disciplina de biologia aos pressupostos da Educação do Campo. Isso significa que os conceitos estudados devem contribuir para que as populações do campo (e da cidade) tenham acesso à metodologia científica e aos conhecimentos assim produzidos, de modo que a apropriação desse método auxilie na transformação da escola e da força produtiva dominante envolvida na agricultura, apoiando um projeto de sociedade justa e igualitária;

(2) Formar educadoras(es) do campo que colaborem na construção desse projeto. No segundo semestre da formação, essa colaboração passa pela capacidade de analisar seu contexto de vida e trabalho utilizando-se também de conceitos da biologia e de ciências da natureza, sempre articulados aos componentes curriculares das outras áreas do conhecimento (políticas públicas e gestão educacional, movimentos sociais e o campo, educação ambiental e prática pedagógica);

(3) constituir uma ideia comum de Ciências da Natureza, com as professoras de química e física, a partir de conceitos estruturantes dos componentes curriculares. Assim conjugada, as CN devem integrar a análise do contexto de vida e trabalho, permitindo aos estudantes interpretar a realidade de suas comunidades de forma omnilateral.

(4) Analisar o trabalho docente na educação básica a partir dos pontos 1, 2 e 3 acima listados e articulá-las a documentos de referência, como a Base Nacional Comum Curricular, por exemplo.

Uma proposta de articulação pode se manifestar ao compreendermos os objetivos da análise de conjuntura e associá-los àquelas competências e habilidades da BNCC mais permeáveis a eles. Para conferir o conjunto de competências e habilidades que julgamos mais alinhados ao eixo temático, confira a seção Atendimento à Base Nacional Comum Curricular – BNCC.


Ciências da Natureza na Educação do Campo

O texto que segue tem o propósito de sintetizar um olhar sobre as Ciências da Natureza que nos ajude a trabalhar a formação de educadores nesta etapa do curso de Educação do Campo. Faremos isso a partir dos objetivos do Eixo Temático 2 e das habilidades de ciências da natureza da BNCC mais afeitas a ele. O texto tem também a intenção de apresentar uma proposta de trabalho para as professoras da área de ciências da natureza — proposta aberta ao diálogo e às diferentes compreensões de como essa área do conhecimento pode fomentar uma prática formativa de interesse às populações do campo.

Uma vez colocada as “peças” da análise de conjuntura, temos agora o objetivo de verificar igualmente as peças úteis que a BNCC nos apresenta. Como já apontado, diversas competências e habilidades são correlacionáveis ao eixo 2. Elas versam sobre a importância dos estudantes do ensino fundamental compreenderem o papel que o desenvolvimento científico e tecnológico cumpre na sociedade, o que nos aponta para uma educação científica. Esta educação deve ser capaz de proporcionar à população condições de participar do debate público relacionado às questões sócio científicas e suas controvérsias, avaliando os impactos gerados pelas tecnologias nas comunidades escolares.

Historicamente, no entanto, o sistema escolar não qualifica essa participação popular no debate público. O advento da Educação do Campo, em certa medida, responde a essa defasagem. Nesse aspecto a leitura da realidade que o caderno 2 apresenta a partir da economia política nos parece imprescindível. O desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo e neoliberalismo responde muito mais à necessidade de ampliação das taxas de lucro dos empreendimentos burgueses do que às reais necessidades de bem estar e qualidade de vida das comunidades.

Ou seja, a educação da classe trabalhadora e a organização social para a produção — que determina como deve ser os instrumentos e objetos de trabalho, tais como tecnologia, incluindo infraestrutura, ferramentas, máquinas, técnicas, materiais, conhecimento técnico, uso e ocupação da terra e demais recursos naturais — não são instâncias democráticas o suficiente a ponto de exigir a necessária educação científica da população.

De forma dialética, a escola e o trabalho tornam-se espaços alienantes e alienados, impedindo a tomada de consciência dos setores populares sobre a importância de se organizar os elementos sociais e técnicos de forma a beneficiar não a classe dominante, mas ao conjunto da sociedade.

Precariedade do atendimento à saúde, desigualdade de acesso a medicamentos e serviços hospitalares, epidemia de cânceres, obesidade, diabetes, consumo excessivo de álcool e drogas, intoxicações diversas, violência generalizada, tornam-se o reflexo de alterações nos componentes físicos, biológicos ou sociais dos ecossistemas causadas pelo modelo sociotécnico capitalista, neoliberal.

Diversas habilidades da BNCC estimulam a escola a comparar indicadores como taxa de mortalidade infantil, saneamento básico, doenças de veiculação hídrica, a analisar uso de tecnologias e impactos ambientais e na qualidade de vida, problemas socioambientais causados pela produção e uso de novos materiais e máquinas, etc.

Incluem-se entre esses problemas aqueles de ordem planetária, que são trabalhados na unidade temática Terra e Universo e que abrangem qualidade do ar, efeito estufa, camada de ozônio, matriz energética, etc.

Discutir e avaliar mudanças econômicas, culturais e ambientais, tanto na vida cotidiana quanto no mundo do trabalho decorrente de novas tecnologias e as políticas públicas que incidem sobre as comunidades são igualmente objetos de habilidades previstas no ensino de ciências.

O modelo de produção no campo, de forma coerente ao que estamos propondo no eixo 2, pode ser objeto de estudo e análise, avaliando os processos sociotécnicos que fazem do pacote tecnológico da agricultura industrial aquele amplamente adotado em diversas regionalizações de origem de nossos estudantes de Educação do Campo.

Certamente a massificação deste pacote influencia o tipo de educação que os trabalhadores do campo devem ter, ou até mesmo se é necessário ou não a existência de comunidades e escola no campo. Sabemos que a agricultura industrial gera pouquíssimo emprego e salário. Por outro lado, o projeto de sociedade apresentado pelos movimentos sociais do campo defendem a ampliação de renda e trabalho no meio rural através da valorização de formas de vida distintas daquelas orientadas pelo neoliberalismo.

Nesse sentido, a organização sociotécnica alternativa ao capital desenvolvida pelos assentamentos rurais, comunidades quilombolas, áreas tocadas por pecuaristas familiares, se distingue em toda a cadeia produtiva, desde a apropriação da natureza, passando pelas técnicas de beneficiamento da matéria prima, circulação da mercadoria, até o consumo e descarte de matéria e energia.

Os conhecimentos associados aos fluxos (bens, serviços, monetários, energéticos, conhecimentos, ) de base camponesa devem orientar, portanto, outra dinâmica socio educativa. Compreender a correlação entre acontecimentos históricos e recentes, atores sociais e políticas públicas é uma das principais preocupações pedagógicas manifestada no caderno 2 do eixo temático.

Em um esforço inicial de síntese destas peças até aqui colocadas, oferecemos uma práxis comum, desde as Ciências da Natureza, que contribua para a análise de conjuntura:

Pesquisar, destacar e descrever acontecimentos que tenham impactado a comunidade de origem dos estudantes ameaçando agrobiodiversidade, alterando hábitos, gerando migração, a partir de mudança nos componentes físicos, biológicos ou sociais nos agroecossistemas das comunidades, de forma a:

Entender e explicar a condição de vida da comunidade do ponto de vista da saúde, com base na análise e comparação de indicadores e dos resultados de políticas públicas destinadas à saúde e bem estar;

Analisar historicamente a aplicação da ciência e de suas tecnologias nas diferentes dimensões da vida humana, como no mundo do trabalho, considerando indicadores ambientais e de qualidade de vida, assim como avaliar as implicações políticas, socioambientais e culturais dessa aplicação;

Identificar e classificar diferentes fontes (renováveis e não renováveis) e tipos de energia utilizados em residências, comunidades ou cidades;

Identificar os principais atores sociais que contribuam para restabelecer o equilíbrio socioambiental a partir de alterações na saúde, qualidade de vida e uso de tecnologias provocadas pela imposição de modelos sociais e técnicos.


Contexto Biossocial

Não há descontinuidade entre o social, o humano e suas raízes biológicas. O fenômeno do conhecer é um todo integrado e está fundamentado da mesma forma em todos os seus âmbitos

Humberto Maturana

Em nosso esforço de integrar ciências biológicas ao eixo temático, a frase de Humberto Maturana e Francisco Varela é muito significativa. O fenômeno social dos seres humanos pode e deve ser compreendido também desde a biologia. A vantagem de abordarmos as questões do eixo temático pela biologia é percebermos que as Ciências da Natureza têm muita relação com as questões econômicas, culturais e políticas de uma comunidade, de uma cidade, de um país e também do mundo.

A sociedade humana pode ser entendida como um nível de organização do vivo. Diversas espécies de animais recorreram, ao longo do tempo evolutivo, a esse tipo de organização para garantirem a sobrevivência de seus indivíduos, tais como as formigas, os cupins e as abelhas. Mas muitos outros seres também dependem de se juntarem em grupos para satisfazerem suas necessidades biológicas. Aliás, se é para atribuirmos algum juízo de valor ao fenômeno da vida, enfatizaremos que ela, desde que surgiu no planeta há bilhões de anos, se caracteriza mais pela reciprocidade entre os seres do que pela competição, como prefere enfatizar o pensamento científico e ideológico dominante.

Níveis de organização da vida segundo a Biologia:

O ensino de ciências entra no currículo escolar na segunda metade do século 19. Portanto, os conhecimentos de física, química, biologia e geociências passam a ser ensinados nas escolas em um contexto de disputa entre as forças imperialistas da Europa daquele momento histórico. Na visão da Inglaterra, Alemanha, França, EUA, era preciso que a classe trabalhadora adquirisse conhecimento a ser empregado na indústria. Havia uma competição entre estas nações por ampliar a produção industrial e disputar os mercados consumidores. Como sabemos, essa disputa competitiva culminou na Primeira Guerra Mundial, em 1914, início do século 20.

Naquela época, a biologia (e a antropologia) cumpriu um papel fundamental para a classe dominante e imperialista: criar um argumento científico que justificasse a manutenção da dominação e massacre da população negra e indígena, que já ocorria há 300 anos nos países colonizados como o Brasil. Esse argumento ficou conhecido como Eugenia. Através de atributos físicos e mentais, diversos cientistas defendiam a possibilidade e necessidade de um “melhoramento” da raça humana. Esse raciocínio está na base do pensamento nazista, a Eugenia Nazista e seus esforços por constituir uma “pureza racial”. Na Europa, a consequência dessa racionalidade culminou no chamado Holocausto, o assassinato em massa (genocídio) de milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939.

O conhecimento científico é datado, provisório e um dado cultural. Ou seja, responde às circunstâncias históricas, ao interesse de grupos e classes sociais, e pode ser revisto e atualizado a todo e qualquer momento.

Se a matança de judeus na Europa foi condenada pelas lideranças de todo o mundo, o genocídio de outros povos nunca ganhou a devida repercussão política. A resistência e luta do povo negro, indígena e de suas misturas permanece. Hoje a própria ciência já demonstra que a tese do melhoramento humano é uma mentira utilizada por interesse político e para desumanizar etnias compostas por pessoas não brancas. A herança dessa tese é o racismo estrutural que organiza as relações sociais da atualidade. A população dos países colonizados pelos europeus, até hoje, é tratada de forma desumana, sem acesso aos chamados direitos humanos, seja pelos dirigentes dos países imperialistas seja pelas elites de seus próprios países.

Infelizmente a população brasileira é igualmente vítima de um genocídio constante, pois a política orientada pela racismo predomina no país ainda que existam mecanismos legais que o criminalize. Em uma visão racista de mundo, a cor da pele, a etnia, aspectos da biologia das pessoas são critérios para dizer se um grupo social é ou não digno de humanidade, se pode ser alfabetizado, se pode ter acesso à educação ou participar da vida política e cultural de uma nação.

O mesmo podemos dizer de uma visão sexista de mundo, que determina atitudes ou comportamentos de discriminação e violência baseado exclusivamente no fato de alguém ser homem ou mulher. Dessa forma, pessoas do sexo feminino, por exemplo, sofrem severamente mais violência do que os homens apenas pelo fato de serem mulheres. Esse comportamento violento contra as mulheres é chamado de comportamento misógino, ou seja, um comportamento baseado na misoginia — na repulsa e/ou aversão às mulheres.

Portanto, a biologia participa da vida social de forma que a gente não percebe imediatamente. Temos a tarefa de correlacionar os conhecimentos e práticas da biologia com a realidade vivida por vocês em seus territórios, nos diversos níveis de organização da vida.

Nesse sentido é fundamental compreender a relação entre viver e conhecer, em especial para os seres humanos. Somos e estamos no mundo desde uma troca de conhecimentos que sempre tem relação com uma dada matriz sociocultural.

Eventos históricos como a colonização, escravidão, batalhas e resistências populares, industrialização, assim como os frutos da modernidade tecnológica como as máquinas, automóveis, celulares, modificam o cotidiano e a cultura das pessoas e das comunidades. Compreender estas mudanças, tomar consciência de como elas operam e alteram nossas vidas são tarefas do trabalho educativo. Especialmente quando essas mudanças são conduzidas sem a participação popular, sem uma real democracia. Retomar a humanidade da população também é um trabalho educativo.

Nós e nossas famílias estamos inseridas dentro de um “mundo cultural”. Todo conhecer humano pertence a um desses mundos e é sempre vivido numa tradição cultural, envolvendo linguagens, saberes e práticas transmitidas de geração a geração e que manifestam certa estabilidade ao longo do tempo.

O primeiro Eixo Temático da Educação do Campo – Unipampa enfatiza os aspectos da Identidade e dos Processos Identitários dos estudantes e de suas tradições culturais.

A biologia contribui com o trabalho educativo de inúmeras formas. O ponto de partida que queremos apresentar como tarefa desde as ciências biológicas é o seguinte:

O conhecer é o fazer daquele que conhece

Portanto, se aquele que conhece é aquele que faz, e se todo fazer depende de qual é sua biologia, sua estrutura biológica, é preciso então compreender o que é a vida, como se organiza e quais são suas estruturas. É a maneira de ser de um organismo vivo, em sua totalidade, que nos diz como ele é capaz de desenvolver os conhecimentos necessários para viver nas condições oferecidas pelo Planeta Terra e pela interação que se estabelece com outros seres vivos.

No caso humano, as condições de vida sempre dependem da organização social presente em determinada comunidade pois ela, a organização social, é uma continuidade de sua raiz biológica. Ou seja, a condição de vida das pessoas (saúde, bem estar, etc.) depende do Contexto Socioeconômico, Sociopolítico e Socioeducacional de onde vivem.

A biologia, nesse Eixo Temático do curso, será mobilizada para contribuir na análise de conjuntura que vocês devem realizar durante o Tempo Comunidade. Estudaremos conceitos das ciências biológicas que nos ajudam a analisar o contexto vivido pelos estudantes em seus territórios, e em que medida ele corresponde às necessidades biossociais de sua população.

Veremos que a satisfação dessas necessidades dependem de conhecimentos produzidos pelas práticas inseridas no cotidiano de vida, sejam elas práticas relacionadas com o autocuidado, alimentação, com o trabalho ou com a organização comunitária.


A organização do vivo

Como saber quando um ser é vivo? Ao longo da história da biologia diversos critérios já foram propostos. Esse dado já nos mostra a dificuldade que a ciência tem em definir o que é e o que não é algo vivo. A pandemia do coronavírus Sars-cov-2, que causa a doença Covid-19, nos mostra essa dificuldade: alguns materiais de divulgação científica para a população enquadra o vírus como uma entidade não viva; outros, pelo contrário, vão afirmar que o vírus faz parte da classe de entidades que chamamos “seres vivos”.

Algumas pessoas na ciência propuseram que o critério fosse a composição química, ou a capacidade de se movimentar, ou ainda a reprodução. Ou, por fim, alguma combinação de critérios, uma lista de propriedades, tais como:

Características Ser Vivo

Célula como a unidade básica da estrutura e do funcionamento da vida. Existem organismos que possuem apenas uma célula (unicelulares) e outros que possuem diversas células (multicelulares);

Ciclo de vida dos organismos que envolve nascer, crescer, reproduzir e morrer;

Participação no processo de Evolução, que são as mudanças ao longo do tempo que garantem às espécies a sobrevivência nos seus ambientes e a manutenção de seu ciclo de vida;

Metabolismo que envolve um conjunto de processos e reações químicas no interior das células. O metabolismo celular é a manifestação das mudanças evolutivas dos seres para satisfazerem suas necessidades vitais. O metabolismo é o processo que realiza a mediação entre o ser vivo e seu ambiente. Ele está relacionado, por exemplo, à aquisição de energia necessária para toda a atividade da vida.

Todos os seres vivos possuem Material Genético, como o DNA ou o RNA. Estes materiais orientam o metabolismo de cada organismo e estão relacionados com a hereditariedade, pois o material genético transmite as características de uma geração para outra.

Baseado nessa lista, o vírus não se enquadra como ser vivo uma vez que ele não têm célula nem um metabolismo celular que garanta, por exemplo, reproduzir-se por conta própria. Como sabemos os vírus, para se reproduzirem, necessitam do metabolismo celular de outros seres, como uma bactéria, planta ou animal.

Talvez os vírus sejam considerados vivos em uma outra proposta, aquela que afirma que seres vivos são aquelas entidades capazes de produzirem de modo contínuo a si próprias. A menos que “produzir a si próprio” necessariamente implique possuir uma estrutura celular ao invés de controlar os componentes de outro organismo.

A capacidade de produzir a si mesmo envolve todos os componentes moleculares de uma célula, que estão dinamicamente relacionados em uma rede contínua de interações entre eles mesmos e com o meio onde a célula se insere. O conjunto destas interações, o metabolismo celular, é a rede de transformações químicas que satisfaz as necessidades do organismo, tal como aproveitar os nutrientes obtidos para gerar energia utilizada em seu ciclo de vida: crescer, movimentar-se, pensar, trabalhar, etc.

O metabolismo celular produz os componentes que tornam possível sua própria existência, como por exemplo o componente que forma uma fronteira que delimita um espaço “interior” e um “exterior”, a chamada membrana celular.

Curiosamente, a membrana não apenas limita a extensão da rede de transformações que a produz, como também participa dessa rede. Ou seja, o metabolismo é a condição de existência da membrana e a membrana é a condição de existência do metabolismo que a produziu, formando a unidade da vida.

A célula, assim, se torna a unidade básica da vida a partir dessa inter-relação entre metabolismo e membrana. Isso é particularmente importante pois ela nos mostra que a vida surge pela capacidade de se distinguir do meio por si mesma. Essa autoconstituição é o que caracteriza a organização de todos os seres vivos do planeta. A diferença entre cada espécie não está, dessa forma, em sua organização mas sim em sua estrutura.

O vivo é um sistema cuja organização tem como produto ele mesmo, ou seja, todo ser vivo faz o que é e é o que faz. Essa inseparabilidade entre ser e fazer nos ajuda a compreender a frase anteriormente destacada: o conhecer é o fazer daquele que conhece. Ser, fazer e conhecer, portanto, é uma propriedade que se manifesta a partir da organização dos seres vivos.


Vida e autonomia

A vida surge então da capacidade de se tornar uma unidade autônoma, separada do meio em que vive e que estabelece em seus limites uma dinâmica de transformações químicas necessárias para que o ser vivo desenvolva seu ciclo de vida.

A autonomia, portanto, caracteriza a vida desde a constituição de sua menor unidade, a célula. Autonomia, para nós aqui na biologia, pode ser identificada quando um ente é capaz de especificar sua própria legalidade, especificar aquilo que lhe é próprio. Essa especificação permanece como característica não só da célula, mas acompanha igualmente os demais níveis de organização do vivo — tecido, órgão, sistema, organismo, população, comunidade, ecossistema.

Questionar sobre a autonomia necessária em cada dimensão da vida deve integrar o cotidiano de nossa prática educativa. Retomando a linha de raciocínio do Eixo 2, é possível dizer que o atendimento das necessidades biossociais de uma população — tal como de uma célula — exige certo grau de autonomia, ou seja, cada população, de acordo com suas especificidades socioecológicas, deve ter o direito de dizer o que é preciso para que ela atinja bem estar e qualidade de vida.

As atividades que as pessoas desempenham para a manter a qualidade de vida da comunidade da qual elas pertencem, o trabalho delas, envolve conhecimentos, experiências, tecnologias, etc.. Assim, esta comunidade precisa ter autonomia, precisa especificar aquilo que sustenta seu bem estar. É nessa perspectiva que devemos considerar o papel da escola em uma comunidade, assim como o contexto social e político onde ela se insere.

As formas de opressão conhecidas no Brasil, como a colonização, a exploração do trabalho, o racismo, o sexismo, o genocídio da população pobre, negra e indígena, são todas formas de retirar a condição humana destas populações; a consequência disso é que determinados grupos sociais encontram enorme obstáculo para efetivarem sua autonomia e autodeterminarem suas necessidades, seu trabalho e as condições para alcançarem o desejado bem estar e qualidade de vida.

Parte das lutas populares dos últimos 40 anos envolve esse esforço de afirmação de especificidades, de identidades, de necessidades próprias de um determinado grupo social. Quando falamos em comunidades tradicionais, por exemplo, podemos pensar que por trás dessa categoria existe muita luta política, de resistência, importante na construção de identidades sociopolíticas mobilizadas por diversos grupos na conquista de direitos, em lutas que se caracterizam pela afirmação da identidade étnica e cultural como elemento que vincula pessoas e paisagens.

Dessa forma, indígenas, quilombolas, seringueiros, quebradeiras de coco, ribeirinhos, pescadores artesanais, colonos, pecuaristas familiares, povos de terreiro, vaqueiros, ciganos — entre tantos outros —, até hoje vêm lutando pelo reconhecimento de seus territórios de vida.

Certamente as práticas de conhecimento necessárias para a realização do trabalho, da vida, varia em cada território. Da mesma forma o contexto social, político, econômico e educacional igualmente varia de situação pra situação. O mesmo podemos concluir com relação ao tempo: como seres vivos e como seres sociais temos uma história, portanto as necessidades para alcançar a qualidade de vida mudam ao longo do tempo. Analisar a conjuntura de um dado território é um exercício constante, já que os fatores que permitem ou bloqueiam a autonomia de uma população se modificam com o passar dos anos e das décadas.

Elementos como práticas, conhecimentos utilizados pelas pessoas em seu trabalho, modo de vida, hábitos alimentares, papel da escola na comunidade e seu currículo, são todos elementos que precisam ser analisados para compreendermos o contexto de um determinado local. Conhecer e compreender todos estes fatores, em seu conjunto, pode apontar para o grau de autonomia que uma população tem, pode ajudar a perceber como os grupos sociais participam na configuração de seu próprio território.


Atendimento à Base Nacional Comum Curricular – BNCC

A formação de educadoras(es) do campo nesse Eixo Temático contribui para que estes profissionais atuem de acordo com o que se espera em diversas competências e habilidades da Base Nacional Comum Curricular. Na medida em que o eixo 2 oferece subsídios para os acadêmicos formularem eles próprios uma análise de conjuntura, nossa formação de educadores prepara-os a mobilizar dados, informações, conhecimentos e vivências para compreenderem e interpretarem sua realidade. Nas escolas, o trabalho de educadoras e educadores da Educação do Campo certamente contribuirá para o alcance das seguintes competências gerais da BNCC ensino fundamental:

  • Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva;
  • Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas;
  • Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta.

As competências específicas de Ciências da Natureza, de modo geral, são contempladas em todo e em cada eixo do curso de Educação do Campo. São mais diretamente relacionadas pelas atividades formativas do eixo 2 as competências que envolvem:

  • Compreender as Ciências da Natureza como empreendimento humano, e o conhecimento científico como provisório, cultural e histórico;
  • Compreender conceitos fundamentais e estruturas explicativas das Ciências da Natureza, bem como dominar processos, práticas e procedimentos da investigação científica, de modo a sentir segurança no debate de questões científicas, tecnológicas, socioambientais e do mundo do trabalho, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva;
  • Analisar, compreender e explicar características, fenômenos e processos relativos ao mundo natural, social e tecnológico (incluindo o digital), como também as relações que se estabelecem entre eles, exercitando a curiosidade para fazer perguntas, buscar respostas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das Ciências da Natureza;
  • Avaliar aplicações e implicações políticas, socioambientais e culturais da ciência e de suas tecnologias para propor alternativas aos desafios do mundo contemporâneo, incluindo aqueles relativos ao mundo do trabalho;
  • Construir argumentos com base em dados, evidências e informações confiáveis e negociar e defender ideias e pontos de vista que promovam a consciência socioambiental e o respeito a si próprio e ao outro, acolhendo e valorizando a diversidade de indivíduos e de grupos sociais, sem preconceitos de qualquer natureza;
  • Conhecer, apreciar e cuidar de si, do seu corpo e bem-estar, compreendendo-se na diversidade humana, fazendo-se respeitar e respeitando o outro, recorrendo aos conhecimentos das Ciências da Natureza e às suas tecnologias.

Considerando ainda a integração entre formação inicial de professoras/es, eixo temático e a biologia, ressaltamos a pertinência das seguintes habilidades no desenvolvimento da proposta político-pedagógica no eixo, tendo em vista a unidade temática Vida e Evolução:

EF07CI08

Avaliar como os impactos provocados por catástrofes naturais ou mudanças nos componentes físicos, biológicos ou sociais de um ecossistema afetam suas populações, podendo ameaçar ou provocar a extinção de espécies, alteração de hábitos, migração etc.

EF07CI09

Interpretar as condições de saúde da comunidade, cidade ou estado, com base na análise e comparação de indicadores de saúde (como taxa de mortalidade infantil, cobertura de saneamento básico e incidência de doenças de veiculação hídrica, atmosférica entre outras) e dos resultados de políticas públicas destinadas à saúde.

EF07CI11

Analisar historicamente o uso da tecnologia, incluindo a digital, nas diferentes dimensões da vida humana, considerando indicadores ambientais e de qualidade de vida.

Obter o resultado formativo para que os estudantes possam desenvolver estas habilidades na escola básica e em outros espaços educativos depende, certamente, da organização conjunta do trabalho pedagógico entre os docentes envolvidos no eixo temático. Na medida que essa organização avança, as Ciências da Natureza emerge como área e realiza o entrelaçamento com as outras unidades temáticas: Matéria e Energia e Terra e Universo. Nesse escopo, as habilidades permeáveis ao segundo semestre são (necessário confirmar com docentes de química e física responsáveis pelos componentes desse eixo):

Matéria e Energia:

EF07CI05

Discutir o uso de diferentes tipos de combustível e máquinas térmicas ao longo do tempo, para avaliar avanços, questões econômicas e problemas socioambientais causados pela produção e uso desses materiais e máquinas.

EF07CI06

Discutir e avaliar mudanças econômicas, culturais e sociais, tanto na vida cotidiana quanto no mundo do trabalho, decorrentes do desenvolvimento de novos materiais e tecnologias (como automação e informatização).

EF08CI01

Identificar e classificar diferentes fontes (renováveis e não renováveis) e tipos de energia utilizados em residências, comunidades ou cidades.

EF08CI06

Discutir e avaliar usinas de geração de energia elétrica (termelétricas, hidrelétricas, eólicas etc.), suas semelhanças e diferenças, seus impactos socioambientais, e como essa energia chega e é usada em sua cidade, comunidade, casa ou escola.

Terra e Universo:

EF07CI12

Demonstrar que o ar é uma mistura de gases, identificando sua composição, e discutir fenômenos naturais ou antrópicos que podem alterar essa composição.

EF07CI13

Descrever o mecanismo natural do efeito estufa, seu papel fundamental para o desenvolvimento da vida na Terra, discutir as ações humanas responsáveis pelo seu aumento artificial (queima dos combustíveis fósseis, desmatamento, queimadas etc.) e selecionar e implementar propostas para a reversão ou controle desse quadro.

EF07CI14

Justificar a importância da camada de ozônio para a vida na Terra, identificando os fatores que aumentam ou diminuem sua presença na atmosfera, e discutir propostas individuais e coletivas para sua preservação.

EF08CI16

Discutir iniciativas que contribuam para restabelecer o equilíbrio ambiental a partir da identificação de alterações climáticas regionais e globais provocadas pela intervenção humana.

Importante ressaltar que as habilidades e seus conteúdos disciplinares, pela concepção educativa da Educação do Campo, estão submetidas ao desenvolvimento da prática pedagógica em cada oferta do componente, a depender do perfil da turma e dos elementos concretos que a alternância oferece em suas etapas escolar e comunitária.

As habilidades com relação direta à formação de nossos estudantes no curso, desde o componente “construindo conhecimentos de biologia para o ensino fundamental”, são as seguintes:

Vida e Evolução

(EF06CI05) Explicar a organização básica das células e seu papel como unidade estrutural e funcional dos seres vivos.

(EF06CI06) Concluir, com base na análise de ilustrações e/ou modelos (físicos ou digitais), que os organismos são um complexo arranjo de sistemas com diferentes níveis de organização.

(EF06CI07) Justificar o papel do sistema nervoso na coordenação das ações motoras e sensoriais do corpo, com base na análise de suas estruturas básicas e respectivas funções.

(EF06CI08) Explicar a importância da visão (captação e interpretação das imagens) na interação do organismo com o meio e, com base no funcionamento do olho humano, selecionar lentes adequadas para a correção de diferentes defeitos da visão.

(EF06CI09) Deduzir que a estrutura, a sustentação e a movimentação dos animais resultam da interação entre os sistemas muscular, ósseo e nervoso.

(EF06CI10) Explicar como o funcionamento do sistema nervoso pode ser afetado por substâncias psicoativas.


Fontes e referências

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Cruz, V. do C. (2012). Povos e Comunidades Tradicionais. R. S. Caldart, I. B. Pereira, P. Alentejano, & G. Frigotto (Eds.), Dicionário da educação do campo (pp. 594–600). Rio de Janeiro : São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz ; Expressão Popular.
Lewontin, R. C., & Levins, R. (2007). Biology under the influence: dialectical essays on ecology, agriculture, and health. New York: Monthly Review Press.

1 comentário

Construção da pesquisa na Educação do Campo – Educação do Campo & Agroecologia · 16 de junho de 2020 às 18:07

[…] Caso queiram aprofundar estudos a respeito do Eixo Temático 2 do curso, confira essa página: Contexto Biossocial. […]

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