O Assentamento (?) Elizabeth Teixeira tem sido o caminho de, tem estado transeunte entre a reforma e o agrário; vida em agrarianismo, gerúndio sem dicionário: agrariando… Sem-terras semi-instalados em terra que não tem papel, sem-terra e sem-papel, sem o estável da formalidade, genuína quasidade

Quasidade é um modo específico de acontecer, nem qualidade nem quantidade. Trata-se de uma categoria ontológica: a intensidade ou a virtualidade puras. O que exatamente acontece, quando algo quase acontece? O quase-acontecer: a repetição do que não terá acontecido? [63]

É neste intervalo que as imagens de Seis dos Onze ganham contorno. O próprio processo de aproximação e efetivação do campo para a coleta de suas imagens insere-se nessa atmosfera da quasidade, quase-imagens, quase-filmagens. A ciranda do assentamento é uma atividade de extensão da universidade em consonância com a organicidade do movimento no local; as crianças são convidadas a participarem em meio às suas cotidianidades; os espaços comunitários refletem a aspereza e a suavidade de tudo ao redor – a inserção subjetiva do que representa um movimento social para os que lá transitam, o pasto e seus matos-árvores que suportam o canto dos pássaros empoleirados, minúsculos sons de folha seca carreada de brisa que passeia também poeira, plásticos, rumores, mugidos; a inevitável concretude dos prédios da fundação Casa, logo ali… a interrogação de vencido prazo: presídio cercando crianças ou infância dissuadindo arames?

Esfarrapadas visões ainda do que lá vi. Olho farpado pela prisão das fundações que inventamos – casa, marcha, família, deus, liberdade, cidade, propriedade.

Elizabeth pra além e aquém da personificação que sugere o próprio do nome. Um signo avesso, um marco-mártir que desterritorializa pois não é fixo nem estático nem acabado, incandescência preta e branca que encarna pigmento dolor, saturação sul, amétrica intensidade que na engrenagem inventa a contra mola que resiste, variação color…

A Elizabeth-corpo, película e pele, documentário rodado na Galileia de cá, pernambucana. Documentário de Eduardo Coutinho interrompido pela armada força (romana?) de 64, ameaça campesina… terra-quase-dividida, filme-quase-rodado, interrompido, giro do tempo, finalizado 20 anos depois, aforada narrativa, semidocumental…

O Elizabeth-lugar, probidade distraída e informe, logradouro burla-credo, pagão da ordem, o fora, disforme… Espaço lacunar num ardiloso tecido de paisagem normatizada.

Quase gente, o não-lugar, quase mito, o que não se assenta, persona de palco sem cenário. Movediço território, insustentável e leve no agudo do momento presente, o mesmo outro. Espaço estético que se remonta pela afecção da memória e pela subjeção imaginativa; Elizabeth nem gente nem lugar, sibila de sensível discursividade.

Flutuante é também o gregarismo itinerante daqueles que lá vão vivendo, à espera/des-espera (que se repete desde a favela) do que não terá acontecido, da truculenta reintegração que sempre quase-acontece (o aparelho de captura é o mesmo, a super corporação em estatal roupagem).

Há portanto uma latente (e até aqui perene) liberdade da significação – quem é este outro que lá vive, assentado, ocupante, aprisionado, vivente, sertanista de dentro? diabo tirante a cinza, um gris enculturante na terra parda. Ainda que pouco novidade exista na lida diária são novos os universos de referência que ali se vão estabelecendo; É esta liberdade de significação que aloca/desloca outros territórios existenciais, ainda que a existência pareça ser a mesma… risco campesino – diferença e repetição.

Exercício de criação na repetição, exercício de criação de linguagem que capta um instante deste devir. É a minuta da hora que permanece rascunho, sempre em obra.

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Tijolos, fendas na palavra da palavra, decodificação frástica no objeto em si anunciando verdades secretas e ausentes. Parábola semântica e sintática, atualização constante do que já teria sido. Filme, documento, pele-película por sobre as texturas em que estas atualizações se projetam; pessoas e coisas tornadas signos de virtualidades atualizadas, tudo pra poder escavar mais a largo o que tudo isso revolve e não se define, mas está: verdades atonais.

Um lugar chamado Elizabeth sinonímia de vida(s) e desejos que atravessam as significações culturais que constituímos, como se a reforma agrária se tornasse um ente porque quase, e apenas quase, fenecesse, e este ente é quem atravessa: séculos, regimes, ideários, concepções, história, governos. E por apenas quase fenecer vai-se permanecendo desviva de fixações, como se abandonasse quem é pra deixar de ser transcendente, se tornar luto-luta-criação imanente… recampesinização?

Fala de Mateus menino, “aqui é os sem-terras Elizabeth Teixeira”, filho herdeiro de quasidade que impermanece na rigidez dos códigos, e a vida entre o cavalo e a moto é como alfabetizar o que ainda não tem letras e não se arranja em sentenças, ação do verbo recampesinizar. “Aqui é o nosso lugar que a gente mora e aqui nós não saímos mais”… o nunca sair agora não trata-se da circunscrição da gleba sem escritura, o nunca sair é do território do sempre inventar. Regime que se auto determina.

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As imagens de Cabra marcado pra Morrer são as vísceras do argumento. Passado e presente, reunidos e divorciados pelas imagens – “a single image may be the explicit form of an entire vurtual universe” [64]. Passar por e rever Elizabeth lugar-filme-pessoa é tomar contato com um específico arquivo de memória, é testemunhar a história mesma da potência de se fazer história. A contação que nos provê Coutinho é um traçado delicado que faz marca e acentua à sua maneira o cinema nacional. Não está ali diretamente a tencionar a lógica do esquema representativo, mas todo ele é um bailar por entre narrativas que nos deslocam, imagens de imagens, projeções de um passado que não se presentificou, a não ser ali, no semblante das personagens, nas falas, nas entremargens da imagem.

O exercício de Seis dos Onze é reaver pelo documentário de Coutinho e pelas filmagens próprias o nó misterioso por entre os planos escolhidos de forma que possa surgir as metáforas entre o passado e o presente, fraternidades que se atualizaram ou não, comuns que se comungaram ou se partiram, filhos elizabethianos que vingaram esvanecendo-se.

Inventar história, tornar racionalidades indiscerníveis, pensar o comum do pensamento e transcorrer por entre a grande parataxe do inconsciente coletivo… seria esse o campo de uma educação imagética do campo? Poderia o material audiovisual engajar afeições e deserções que retalhem o corpo das representações culturais que nos pertence, em particular naquelas envolvidas na produção de alimentos, no rururbano, na ecologia e na ocupação de terras, na terra? É certo que estes símbolos massificados pelas estruturas dominantes precisam ser mutilados para que outros sentidos, múltiplos, surjam. Em que medida a subversão da lógica do esquema representativo na criação de linguagens audiovisuais responde às demandas do que se constrói em agroecologia, comunicação, pedagogias?

Para Rancière a frase não é necessariamente o dizível, a imagem não é necessariamente o visível; a frase-imagem é a união de funções a serem definidas esteticamente que subverte a lógica do esquema representativo. A imagem da frase-imagem deixa de ser um suplemento que confere consistência para se tornar a potência disruptiva do salto; a frase permanece no papel de encadeamento, mas apenas enquanto é aquilo que dá consistência, consistência da passividade das coisas sem razão… Mas se o suposto acima está livre da relação frase-dizível, imagem-visível, teremos então uma “potência frástica” e uma “potência imageadora” a serem alcançadas não por uma técnica de específica materialidade, mas por um arranjo cuja especificidade se dá pelos códigos de sua apresentação.

Vai formando-se aqui um desenho-base no qual podemos interferir, propor criações com. As relações de interesse nesta pesquisa fazem-se na multiplicidade das vivências agriculturais que se apresentam nos campos e que, conceitualmente, são constitutivas de unidades de análise acadêmica: os agroecossistemas de base agroecológica. Por sua vez, estas práticas respondem à multiplicidade que está composta na realidade envolvente, em seus diversos cortes de análises, estudos e percepções – ambiente, sociedade, economia, cultura, religião… Daqui podemos concluir sobre a indefinição pragmática, em seu caráter positivista e a despeito de seus princípios generalizantes, do que vem a ser Agroecologia, ela mesma aberta à miríade destas vivências agriculturais. Ainda que disciplinarmente circunscrita ao pensamento sistêmico, pedimos licença (poética) aos cânones da matéria para romper hierarquias analíticas…

Rancière nos apresenta enquanto virtude da frase-imagem o nó misterioso entre relações enigmáticas que se dá pelos planos, fotografias e texto. A aposta é na potência de contato entre distintos elementos, e não de tradução ou explicação, o cinema como produtor da história a partir do choque de heterogêneos, choque que fornece a medida comum – capacidade de exibir uma comunidade construída pela “fraternidade das metáforas”.

O comum de interesse aqui parece ir-se forjando em desígnio, disposição de inventar o mundo diante o caos que têm os povos do campo; em desdobrar a força caótica em nó misterioso de relações entre a materialidade de seus registros; em circunstanciar a maneira própria de serem o mundo pela potência de continuidade, pela potência de ruptura… O comum de reunir elementos sob a forma de mistério imbrincando pequena fábrica de analogias para fazer o comum.

Retomar o pensar partilha, políticas partições do dar a ver e o dar a entender em educação (do) sensível. Militar no espaço vazio da uniformidade de cena para fazer corresponder as forças que movimentam outros regimes e inteligibilidades – vetores de digestão e apodrecimento de signos que não mais nos alimenta. Como na vasta paisagem em aberto preencher de ruralidades os espaços vazios, a multiplicidade dos existires no contínuo rururbano.

Uma mutação autogerida, criada em planos de contato com as velocidades e intensidades do caos que de onde retiramos o que nos move e difere. Inventar diferenças diferenciantes que submeta o regime da falta e da queda ao que um dia foi; desinventar a forma civilizatória pra fazer acontecer uma suficiência campesina, indígena, ribeirinha, citadina; desacelerar o crescimento e acelerar a transferência de riquezas, circulação livre de diferenças, em espaços produtores e reprodutores de sentidos para auto-suficiência e auto-determinação para uma vida que seja boa o bastante, ação suficiente. [65]

Abrir alas ao novo, fresca visão de mundo que se atualiza no caos que nos mora.

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