“Cidades imaginárias, o Brasil é menos urbano do que se calcula” [17]. Este título traz duas significações, uma de ordem subjetiva em que se verifica o imaginário rural eclipsado pelo urbano, e outro de ordem político-econômica que faz pensar o modelo de desenvolvimento que direciona as políticas públicas e as reproduções culturais. De todo modo traz para o debate este espaço nulificado resultante do encontro entre urbano e rural, este rururbano unilateralmente destituído de visibilidade culturalizante. O “entre” que hibridiza o urbano e estica seu horizonte (mental) deve ser re-conceitualizado? devemos abrir a ele espaço político (estético?) para localização dos sentidos culturais hoje marginalizados ainda que potentes e desestabilizar o torpor que envolve o consentimento em torno da noção de cidade?

O processo histórico testemunhado pela era moderna parece reunir símbolos e significações que moldam inteligibilidades estruturantes do entendimento dicotômico entre cidade e campo, em detrimento deste, um enovelamento de percepções que alheia a interdependência existencial desta relação. A “ficcionalidade” própria desta era (estética), nos diz Jacques Rancière, “se desdobra entre a potência de significação inerente às coisas mudas e a potencialização dos discursos e dos níveis de significação” [18]. Um problema-pesquisa vai se delineando: como pensar dispositivos imagéticos, pedagogias culturais na reformulação político-subjetiva que compreende e apreende a relação campo-cidade?

Há que constituir-se um novo ciclo de pensamento político, de outro universo de ideias que dê forma a este ciclo, uma mudança dos “significados, categorias, conceitos e discursos através dos quais a realidade adquire sentido e pode ser nomeada”. “A transformação do campo semântico” é parte integral dessa mudança. Os sentidos e conceitos, “ao constranger e limitar a esfera do possível, ao permitir ou impedir que certas coisas sejam pensadas, são parte central de qualquer projeto político de transformação social” [19].

O diálogo com as manifestações de 2013 permanece: o direito à cidade, direito à mobilidade urbana passaria a ser rururbana? O acesso ao significado das redes agroalimentares que alicerça a urbe pode ser uma reivindicação do direito à “cidade”? Que sentidos, ainda que no “subterrâneo” cultural, transitam pra cá (urbe) e pra lá (ruris)? É pioneira então a ação dos sem-terra, que oferece à distopia da existência periférica nas cidades a aproximação junto aos desvalidos da terra, num coágulo de resistência política frente a todo sangue da disputa fundiária derramado, efetivando o “sentido de democracia que excede os limites tradicionalmente atribuídos ao estado de direito” [20], na dialética que demanda da potência criativa reinvenções, dinamismos transgressores que ampliam a noção de democracia e portanto de realidade.

Há um certo debate que circula em meios acadêmicos, mas não só, trazendo a ideia de “crise contemporânea”, ou “crise civilizatória”. É evidente que as questões ambientais são disparadoras de diversas análises que culminam nestes termos, porém mais abrangentes são as argumentações que procuram esclarecer que as mazelas humanas têm, no sistema capitalista, sua mais evidente causa, notadamente pela sua necessidade intrínseca de estabelecer misérias – sociais, econômicas, culturais, subjetivas.

A que mais me intriga, no entanto, são as palavras que procuram dissecar e relacionar aos efeitos interpretados pelo termo “crise” a ausência de um legítimo regime perceptivo da “realidade”, das relações “complexas” dos atores e suas redes no emaranhado de coisas e existências que o ser humano é capaz de inventar em sua ação no planeta.

Diversos produtos culturais caminham neste sentido, desde os mais pop’s como os filmes “Avatar”, “Matrix”, ou mesmo aqueles que se encontram no pensamento científico (e que não por isso deixam de ser um produto de nossa cultura) – lembremos de Fritjof Capra e seu livro-filme “Ponto de Mutação” (The Turning Point), a “Árvore do Conhecimento” de Humberto Maturana, ou então os diversos enfoques que os filósofos desenvolvem para pensar vida e existência, ou até o talvez mais debatido neste meio – “A Estrutura das Revoluções Científicas”, de Thomas Kuhn.

A agroecologia encontra-se também nesse círculo de raciocínio, epistemologicamente ela se propõe a refletir o atual paradigma científico questionando o positivismo, o modo cartesiano de pensar e agir no mundo e, neste caso, de conceber a produção agrícola [21].

Foi movido pelo contato com estas ideias que permaneci estudando, atuando e elegendo como “parceira acadêmica” a agroecologia, e em seus contrastes e contradições, inerente a qualquer processo que mobiliza gentes e coisas, desloquei o olhar de pesquisador para enxergá-la. Ou ainda, cego frente às significações que ela, articulada, gera nos espaços que frequento, desloquei-me institucionalmente para tateá-la sob outras dobras e perspectivas e encontrei no mestrado em Divulgação Científica e Cultural espaço para estudar a campesinidade que nos habita e as movimentações cidade-campo sob o aspecto das imagens: embeber agroecologia em divulgação, avessar campesinato em contemporaneidade cultural, resistir política em sensibilidade, tencionar significado em movimentação, dissociar imagem da frase, comunicar dessintonias…

Entre massacres e aniquilamentos (pessoas, dizeres, memórias) a opressão no campo reedita a intacta capitania e defere a morte hereditária. Eldorado, Corumbiara, Carajás… que espécie de herança nos deixa a morte dita severina? Conflito agrário, cruz ao campo, imenso latifúndio acolhedor: especulação, concentração, modernização – sim, claro, o progresso. Tumulto que não se circunscreve à escritura do hectare em disputa. Símbolos vêm à cena na disputa do território tão concreto quanto imaterial: fato distinto cada qual com seu fruto, signo e código, por vezes próprios, linguagens ímpares que o idioma corrente, acadêmico ou popular, mostra imiscível capital e soberania, commodities e segurança alimentar, monocultura e resiliência, latifúndio e dignidade humana. A terra ocupada prolifera vozes dissonantes que reverbera no editorial da página dois, em transmissão televisiva, em discurso inflamado, na vida que se assenta e no prato que nos chega à mesa… por fim, reconfigura o universo possível e o mapa do sensível [22].

Algumas perguntas desaterram-se: uma delas, “O que a severina voz tem a nos dizer?”, talvez seja a mais motivadora e nos faz deparar com as desavenças e hostilidades entre aqueles que ao redor da cova (a de palmo medida) se anelam, há séculos. Esta outra, “O que transmite o som desta voz, sua mensagem e sua visão de mundo?”, nos direciona a atentarmos para os mediadores e atravessadores das mensagens que podem traduzir os códigos em jogo – argumentações, ficcionalidades, perspectivas, possibilidades, recriação.

Lidar com este tema teria mais similaridade com o resgate de velhos e dolorosos momentos caso sua repercussão não implicasse na própria perpetuação deles. A atualidade atroz dos fatos recobra-nos vivificar os significados postos na mesa [23]. São estes jogos de significados que, na compreensão dos estudos culturais, traduzem o conceito de cultura, enfatizando sua importância na estrutura e organização das sociedades e as relações de poder nesse contexto [24]. Nesse sentido a pesquisa em curso entende que a cultura dos povos do campo representa e partilha a estratégia de resistência de modos particulares (e não totalitários) de conceber a vida e o mundo.

Esta partilha tem sido vital na formulação de estudo e nas abordagens acadêmicas, tornando essa prática científica historicamente situada em interação com o mundo que a rodeia. O que podemos esperar deste íntimo entrelaçamento entre mundo e ciência? Coevolução no processo de síntese e gestão do conhecimento? confluências, interferências, ou a encarcerada indissociabilidade?

Tão longe e tão perto: se as práticas científicas situam-se num contexto histórico, mundanamente influenciadas por quem as faz, este “mundo” e sua multiplicidade a desconhece tanto quanto a prática científica esquiva-se dele: Mero ranço político fruto da abissal divisão de classes? Simples ruptura política da produção acadêmica que adota o discurso único em detrimento do que nos tem a oferecer as minorias? Cultura científica entorpecida pela aniquilação do sentido dos sentidos? inércia? depressão? influxo popular?

Como estabelecer uma estratégia investigativa arrodeado de armadilhas como essas, sem ulcerar diante de uma ciência alérgica às formas, às aparências, a todas essas coisas sensíveis que ela tende a desprezar, pelo motivo de que elas não podem reduzir-se a uma intelectualidade pura? [25] Uma ciência sem um caráter rizomático, em termos deleuzianos, parece incapaz de respeitar o caráter público das universidades públicas, fazendo destas cúmplices ferozes do império mercadológico mundial que lamina e nega o que somos, que desconstitui nossa maneira de pensar e existir em nossos territórios; que desalinha-nos a sabedoria de viver integralmente e integrados aos sistemas sociais e naturais que remontam às nossas origens, desagregando-nos: árvore sem frutos, soja sem grão, planeta sem atmosfera, ar sem pulmão.

Ignorar o que está em jogo no contínuo desenvolvimento das práticas científicas é uma posição política que joga no risco de fortalecer a brutalidade nas relações entre conhecimento, poder e cultura – ainda negamos que a subjetividade e os ideais dos pesquisadores aparecem em seus produtos? [26]

Sentidos, poderes, conhecimentos; exercícios políticos, fomento, produção científica… reagentes e catalizadores do imenso metabolismo social que corporifica instituições, estabelece regras (formais ou não) para os fluxos circulatórios de gentes e coisas, nutridos pelos interstícios econômicos, artísticos, políticos e poéticos, que agregam-se em territórios existenciais com mais ou menos organicidade, mais ou menos harmônicos, em estados provisórios, latentes, sempre em (des)equilíbrio dinâmico.

É justamente pela possibilidade concreta que nos oferece o dinamismo político das instituições que se abrem os espaços de disputa cabíveis, onde surgem os germens que resistem ao fluxo massivo do produtivismo industrial, ainda que sujeita às mesmas regras, uma academia que não se esquadrinha simplesmente pela régua da quantidade e persiste em ser lócus insubmisso às ordens generalizantes.

É neste “arremedo de estamparias” que se elegem algumas categorias conceituais, algumas forças-que-formam pensamento para discorrer sobre a movimentação cidade-campo. Se o preço desse arremedo é facear frontalmente o imaginário ocidental, aceitemos o desafio tal qual Bruno Latour [27] se lançou:

Qualquer que seja a etiqueta, a questão é sempre a de reatar o nó górdio atravessando, tantas vezes quantas forem necessárias, o corte que separa os conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e a cultura. Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no interior das instituições científicas, meio engenheiros, meio filósofos, um terço instruídos sem que o desejássemos; optamos por descrever as tramas onde quer que estas nos levem.

Optando por este caminho analítico, assumimos que o tema da questão agrária pode ser ricamente estudado quando a análise crítica se pauta em suas dimensões culturais, em seus “processos” ou “redes” que tecem essa questão, no exercício acadêmico de gerar conversações entre retóricas, políticas e epistemes; Que as atividades sociais relacionadas com o ato de ocupar e socializar a terra para produzir alimentos (e com o ato de impedir este ato), ao requererem seu próprio universo distinto de significados e práticas nos fornecem pistas valiosas tanto para compreender os agenciamentos expostos e os produtos culturais à isso relacionado quanto para subsidiar a produção de outros sentidos, em articulações que tenham interesse à Divulgação de Ciência e Cultura e à Educação.

É neste cenário teórico-metodológico que produzo olhares sobre a movimentação cidade-campo a partir de pesquisa e vivência junto a algumas expressões agriculturais e camponesas do Estado de São Paulo, em sua maioria assentamentos da reforma agrária. Entrecortando o debate modernidade/pós-modernidade reafirmo a conceituação de cultura na relação entre significados e sentidos partilhados na sociedade para tencionar identidades e valores no entrelaçamento do mundo rural com o ideário moderno, sentidos camponeses e crise civilizatória.

A Agroecologia motiva/anima este cenário investigativo e o retroalimenta, desde seus princípios conceituais, politizando a produção de conhecimento acadêmico ao reposicionar os atores envolvidos (entrosada às concepções dos estudos culturais da ciência); na relação dialética da localidade com a globalidade referente aos agroecossistemas e à inscrição cultural dos povos do campo, que ao forjarem neles intimidades seculares agenciam princípios agriculturais que restabelecem virtudes como resiliência ecológica e capacidade de prover segurança alimentar. Está em curso uma série de fenômenos envolvendo a cultura dos povos do campo, da floresta, povos indígenas, ribeirinhos e camponeses, que se adaptam à conjuntura do presente criando estratégias de re-existência em direção ao futuro.

A legitimação pública crescente destes agenciamentos tem implicado sério constrangimento ao conhecimento institucionalizado, às postulações da ideologia agronegociante, às normatizações de Estado, ao conjunto de símbolos e códigos que, massificado pelos espaços produtores de sentidos, traduzem o discurso único e a “monoculturalização” industrialista-consumista. Deslocam-se os territórios subjetivos e existenciais, abrem-se fissuras e feridas identitárias, despertam-se minoridades constitutivas dormentes e potentes.

Há no entanto uma clara imperceptibilidade social acerca destes vetores culturais – produzidos como ausência pelas representações culturais circulantes [28]. Mas se nos for permitido ampliar o espectro do que se apresenta no conjunto do que é “real”, aí encontraremos, ao menos, maior diversidade e possibilidades do existir. Isso nos inspira a refletir sobre os “despertares” para outras formas do fazer acontecer.

Esta pesquisa olha este fato e pretende dissertar sobre elementos que podem contribuir à intenção de transformar esta ausência em presença; sobre os significados que podem assumir essa expansão do presente e de mundos na valorização da experiência social em curso representada pelas expressões agriculturais. Que plataformas de divulgação de ciência e cultura esse debate poderia gerar? Essas plataformas interessariam à educação do campo e às políticas públicas voltadas a transição agroecológica? Que imagens e sentidos podem ser partilhados, qual política permearia sua estética? Poderia ela evitar, a exemplo dos pacotes agroquímicos, arbitrariedade e pronta imposição, pré-definidora e por isso esterilizante de emancipatórios processos pedagógicos?

Na tradição dos estudos culturais há o interesse por elementos de história, cultura e poder relacionados, assim como os valores e sentidos vividos, os modos pelos quais os grupos sociais definem as condições em que vivem e as experiências que partilham, ou seja, trata-se das representações que fazem dos acontecimentos.

O estudo das representações culturais parece essencial aos estudos culturais pois são elas que produzem e intercambiam significados entre as pessoas. A forma como a questão agrária é exposta – nas ocupações, nas marchas, nas místicas, assim como na repressão, no assassínio, no silêncio – cria significados que servem de alimento para a formação de nossa identidade. O que aqui está sugerido é que a identidade emerge, em parte, dos conceitos e definições que são representados para nós pelos discursos de uma cultura, e pelo nosso desejo (consciente ou não) de responder aos apelos feitos por esses significados [29].

No estabelecimento de novos conhecimentos em divulgação científica e cultural, é primordial esta reflexão sobre os elementos que poderiam gerar e moldar outras representações, novos significados, inovadoras partilhas. Como a imagem, no pensamento da atualidade, se relaciona com as significações circulantes? Nos discursos e “frases culturais” em que a imagem é instrumento, que papel cumpre na relação entre fixar uma representação ou fazer flutuá-la?

Em nosso tema, que “domínio simbólico” – significações, visões de mundo – nos acometem ao olharmos para os camponeses e suas movimentações? O que o “retorno à terra” em nós invoca? A decomposição do áspero asfalto que nos recobre, o sepultamento da urbanidade exclusivista, a ressurreição de um velho ente… é a ausência do concreto que provoca? As “posições de sujeito” que são produzidas nesta trama cultural e seus discursos parecem portadoras de significativo potencial provocador, a ver pela reação de algumas estruturas sociais e pelo abalo no sistema de crenças e valores produzidos pelas forças de controle social. Se a ideologia, nos estudos culturais, pode ser entendida enquanto “provedora de estruturas de entendimento através das quais as pessoas interpretam e dão sentido para as condições materiais nas quais elas próprias se encontram” [30], é então no embate discursivo que podemos localizar a formulação ideológica que faz emergir ou que rechaça nossa identificação com os atores sociais do campo.

Ferramentas conceituais surgem para correlacionar cultura, jogos de ideias e sentidos presentes num grupo social com ideologia e poder – as noções que legitimam os corpos ideológicos são retiradas dos sentidos partilhados, dos símbolos e significações que são produzidas pela linguagem, pelo discurso – do caldo cultural de uma sociedade [31]. É pela linguagem que as ideologias ganham força e influência; ela não é mera relatora do “real”, ela cria-o. O antagonismo agronegócio/agricultura camponesa não decepciona a afirmação pois por ele atravessa, cotidianamente, a insistente ideia de que a vida rural é “atrasada” e desaparecerá como resultado da primazia tecnocrata, disseminando axiomas que opõe a cultura do campo ao “avançado”, ao “futuro” e ao “civilizado”, qualificando-a tal qual um retrocesso à implementação (tardia) da modernidade no campo.

Influentes produções discursivas, portanto, vêm estabelecendo um imaginário tanto do que vem a ser a proposta dos movimentos sociais quanto do que seria a (recauchutada) modernidade no campo a partir das recentes tecnologias agrícolas – um acirramento das diretrizes da chamada “Revolução Verde”, ocorrida em meados do século XX: intensa mecanização, eficiência laboral, agrotóxicos, e mais recentemente a biotecnologia [32]. São através destes delineamentos que particulares interesses amplificam e dão visibilidade à ideia que vincula progresso (hoje também no discurso da sustentabilidade) à agricultura industrial, forjando posicionamentos, subjetividades e identidades que apoiem um específico “corpus simbólico” embebido num projeto político/ideológico centralizador, despótico.

Precisamente a respeito deste “mito da modernidade”, construído também a partir das discursividades midiáticas, é que parece se sustentar uma das mais fortes contramolas no debate da reocupação do campo e reversão do inchaço das cidades. Como breve exemplo, a peça publicitária feita em parceria das empresas de sementes transgênicas Dekalb e Monsanto vincula a passagem do tempo com a evolução da tecnologia.

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A inexorabilidade do tempo é inferida para um tipo particular de tecnologia em duas passagens nesta propaganda. A primeira naturaliza a tecnologia de bens materiais da vida privada no cotidiano da casa deste suposto fazendeiro sulino (algo entre a fronteira Brasil, Argentina, Uruguai) – a menção ao chimarrão é o único item da casa que faz alguma referência cultural ao público alvo da empresa, o restante da casa é completamente “pasteurizado” pelo ideal consumista que adquire aparatos que se tornam descartáveis por uma obsolescência estética – sofá, fogão, micro-ondas, porta-retratos, geladeira, carro, casa, etc – não há mais nenhum vestígio de uma suposta cultura sulina que possa ser apreendido por quem assiste ao vídeo.

A segunda passagem é a identificação deste ideal com a empresa e o produto que está sendo oferecido: “Escolha mais.” é a frase final da peça, que, colocada após as imagens que trocam objetos “arcaicos” por “novos” pode ser interpretada com a mesma inexorabilidade temporal, o milho transgênico é a consequência “natural” do milho convencional, a transgenia equivale à mudança de roupagem de um brinquedo; o milho mgrr2 tal qual qualquer outro dispositivo transforma e subjetiva o próprio fazendeiro.

Para os Estudos Culturais os meios de comunicação de massa são também agentes da reprodução social – criam também sentidos e significados, e ao fazê-los, produzem cultura, constituem fatos [33]. Que hipóteses podemos propor quando a circulação de significados nestes meios está restrita, tal qual um imenso gargalo, a um oligopólio de opiniões? Estratégias teriam de ser debatidas e moldadas no intuito de fazer proliferar outro fluxo de representações culturais.

Certamente a tarefa não parece simples ao imaginarmos o que seria uma difusão mais democrática das expressões discursivas relevantes que há na sociedade; o que sabemos, no entanto, é que a atual concentração na difusão de significados tem gerado uma falsa sensação de homogeneidade cultural – dia-a-dia acessamos os mesmos discursos, desperdiçam-se continuamente forças criativas, dissemina-se o terror consumista e o medo do que seria uma vida não centrada no consumo.

Inevitável é ouvir as vozes do poderio vigente neste movimento, que suprime vidas na tentativa de extinguir ideias, sem amargar um gosto de negação do que somos. Em Sociedades Camponesas Eric Wolf argumenta que quando inovações tecnológicas são socialmente incorporadas cria-se a existência de uma “solicitação cultural”, pois elas passam a significar mais do que simples meios de obtenção de algo: transformam-se num comprometimento diante do qual o ser humano deverá desdobrar-se para obter. Mas aqui emerge o esboço de um dilema, que só pode ser desfeito pelo diálogo entre cultura e poder. Não é factível que os movimentos do campo possam receber o rótulo de “anti-tecnológicos”, mas parece certo que enfrentem algumas solicitações culturais da modernidade, a saber aquelas que são instrumento de dominação e exclusão do capital. Tratar a tecnologia (e a produção de conhecimento que as concebe) como se fosse produto desprovido de intencionalidades, politicamente neutro, seria um equívoco. Muitas das solicitações culturais da modernidade podem ser categorizadas de “fetiches” tecnológicos, que portam consigo fortes indícios de um projeto de sociedade. Nas palavras de Wolf sobre a cultura, fazem parte de “uma série de processos que respondem a determinantes identificáveis” [34].

A promessa fetichizada da tecnologia reúne força capaz de produzir uma negação cultural do que somos. Futuros inevitáveis, próximo passo evolutivo do Homem… expressões transhumanistas que enfeitiçam tanto quanto assombram. O discurso high-tecnológico parece ser eficiente o bastante para reunir marcas, símbolos e emblemas do plano geral da cultura que lhe são mais adequados, e nos convencer que o futuro caminha para onde ele aponta. Mais do que isso. A tecno-ciência vem sendo “deusificada” na disputa pelo sentido da vida e pelo real – coroa-se como a moderna substituta da religião, adequada a realidades conturbadas e desencantadas [35]. Nesse sentido, talvez não seja mera coincidência ouvir as palavras de Ray Kurzweil [36] que são, para além de fabulosas e fantásticas, desencantadas mensageiras de uma sensação profunda de medo, abandono e solidão. Mesmo toda a potência representada pela bandeira que carrega, a singularidade, é francamente incapaz de remediar as lesões de seu próprio sentimento.

O fundamentalismo tecnocientífico além de não aquecer a alma carregada de calafrios afirma pretensiosamente ser desprovido de qualquer moralidade, fingindo esquecer que se ausentar de posicionamentos políticos (éticos e morais) pode ser o mesmo que aceitar em conivência tenebrosos abusos. A questão é que de fato a ciência cria novas formas simbólicas e oferece “mapas da realidade social problemática e matrizes para a criação de uma consciência coletiva” [37]. Não se trata aqui de requentar moralismos religiosos igualmente perniciosos à construção de um senso de humanidade mais digno, mas de reconhecer que os mapas da realidade social e esta consciência coletiva modelados por uma vertente de ciência têm sérias limitações éticas e morais.

Ditados pela razão-pura, tornamos hábito o distanciamento com nosso ser biológico. Condenamos ao esquecimento o fato de que o humano é justo aquilo que se constitui no entrelaçamento do emocional com o racional. Estamos “antolhados” pela máxima de que o que caracteriza o humano é a razão, e cegos frente à emoção, que fica desvalorizada como algo animal ou como algo que nega o racional. No entanto, se pensarmos as emoções e seus conjuntos como “disposições corporais que especificam domínios de ação”, podemos concluir que não há ação humana sem uma emoção que a estabeleça como tal e a torne possível como ato [38].

A moderna tecnociência tem nos apresentado modos de vida humanos individuais e coletivos que evoluem no sentido de uma progressiva deterioração [39]. Pautados nessa “razão-pura”, nossa forma de produzir conhecimento e propor soluções nos “achata”, pois se baseia em sistemas de valor “unidimensionalizantes”. Não legitimamos (e desperdiçamos) o conhecimento de inúmeras culturas tradicionais.

No entanto, quais são os domínios que fundam as ações humanizadoras?

Se a reincidência humana está permeada dessas características, podemos constatar em nossas interações recorrentes a existência de domínios de ações que fazem do outro um legítimo outro na convivência, de forma a ampliá-la e estabilizá-la. De fato, observamos pelo globo a criatividade em ação em diversas comunidades humanas, burilando hábitos culturais que expressam infindáveis formas de convivência na partilha e na colaboração. Porém, há também um aniquilamento dos agenciadores que permitem, ao conjunto da sociedade, saber e “saborear” estas expressões humanas – cegos, surdos e distantes de qualquer contato com elas. A esta anestesia geral minimalizante que nos atinge são necessárias outras poéticas políticas, que, ao promoverem a reabilitação dos sentidos que nos colocam em contato com o mundo, criam uma razão mais ampla e nos possibilita conhecimentos e saberes mais abrangentes, uma razão que enxergue os entrelaçamentos cotidianos que constituem o viver humano. Novos discernimentos podem ser estimulados, nos ajudando a compreender a temporalidade dos fatos e a varar a aparente unidimensionalidade deste período para atingir o ontem, reconhecer o hoje e inventar o amanhã.

Inexorável, pois, parece ser muito mais o encontro em direção ao mistério que nos une, através do eterno encontro com o outro, do que um futuro a ser maquinado pelo medo da morte; a travessia pelos tantos “estreitos” (como o de Bering) entre o relativismo absoluto e sem base agregadora e uma imposição etnocêntrica e unilateral. O que é desenvolvimento e como os discursos (hegemônicos ou não) que o define se relacionam a uma noção etnocêntrica de mundo? Se há uma inegável distinção do avanço técnico entre Europa e África [40], por exemplo, é igualmente necessário ponderarmos os percursos das apropriações históricas pelo choque dos encontros e pelo coturno da dominação, ou até mesmo aprofundar o debate filosófico do que vem a ser a “riqueza” e o progresso de um povo, de uma nação ou até mesmo de toda a humanidade – uma nação rica é uma nação sem ricos…

Seremos capazes de congregar e confraternizar (e consensuar) o que existe na cumulatividade das culturas humanas? Onde se localizam os espaços políticos e onde repousam as forças instrumentais para engendrar este esforço? Tecnicamente a cultura digital nos serve como instrumento de diálogo e troca, mas como em qualquer outra dimensão do humano também é um universo em disputa, uma ferramenta que nos aproxima fraternamente e/ou um aparato do “search and destroy” – literalmente por alguma força militar ou simbolicamente pelas corporações na sua busca por mercados mais amplos em sua sede por moldar “exércitos” consumidores prontos a atender às ofertas do dia.

No estudo das epistemologias em jogo entre a agroecologia e o agronegócio, Canrobert Costa Neto aponta que é na essência (ou dimensão territorial, em suas palavras) sociocultural que podemos discernir uma expressão política da outra. Ao contrário do agronegócio, para a agroecologia existe uma clara “relevância dos saberes locais para a geração e valorização do conhecimento sob inspiração e controle das populações locais, assim como a procura por redes de escoamento da produção alternativas à lógica da produção como mercadoria” [41].

Nascida academicamente do esforço de superar os problemas advindos da industrialização da agricultura, a agroecologia igualmente enfrenta o desafio universal x relativo, nesse gume entre a apropriação do conhecimento para uso como instrumento de dominação ou a partilha da informação como instrumento de confraternização entre os povos. “Não há ecossistema global”, afirma Frederic Kirschenmann [42] em contraposição aos pacotes tecnológicos da Revolução Verde, “apenas ecossistemas locais, e cada um deles apresenta características próprias que requerem uma atenção especial, única”. Propostas de desenvolvimento rural se referindo à agricultura no plural parece ser uma síntese de interessante análise nesta questão; planos não de transcendência para com a multiplicidade ecossistêmica apontando soluções amplas, mas uma relação de imanência com a diversidade (caótica) dos ambientes e sua frutificação em agriculturas…

Universalizar o sem princípio, a não unidade, uma referência perspectiva para um rural que se autodetermina ao condicionar as práticas “sustentáveis” à elaboração política dos atores locais, sua história, seus hábitos alimentares, sua topografia, sua flora e fauna, enfim, sua cultura. Não diminuir a síntese política ao saber local, mas integrá-lo numa constituição política mais ampla, com o valor na diferença, relação na alteridade e abertura para o exterior em vista da interiorização perpétua, sempre inacabada, desse exterior [43].

Quem constroi o conhecimento? Para quem ele é produzido? Quem se beneficia com ele? Tratores, fertilizantes e pesticidas como receituário incondicional a todos os solos e ambientes, trazendo às paisagens a monotonia monocultural – uma cultura só para todos os sistemas socioambientais agriculturáveis; o dueto leis de patentes e transgenia, onde empresas registram como de sua propriedade o material genético de variedades alimentares [44]: uma apropriação de milênios da “cumulatividade” das culturas humanas, sementes que garantem o cardápio básico – milho, soja, feijão, batata, arroz.

Não foi a toa, portanto, que uma das bandeiras mais significativas dos movimentos sociais do campo foi “ocupar o latifúndio do saber”, claramente uma disputa pelo “imaginário produtor de realidades” representado pela universidade. É no mínimo sensato que a diversidade social se reproduza na produção de conhecimentos e parâmetros quando o acirramento político define futuros.

Parece relevante, portanto, perscrutar e inquirir, constantemente, quais são as forças motrizes dos “conjuntos político-ideológicos” apresentados a nós. Qual é o “sopro de vida” daqueles que forjam as forças político-culturais da sociedade? pois que o encontro também se faz em conflito.

Mas descobrindo que a noção de diferença revela-se necessária na criação da noção de cultura, talvez nos conforte a ideia de que ainda somos demasiado aprendizes nesse imenso educandário das expressões culturais, e que o projeto de civilização global não tenha passado, até aqui, de inicial rascunho onde a humanidade ainda está por vir.

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