Este também é um exercício de criação de imagem e som que explora as discursividades que circulam por entre os espaços produtores de sentidos em torno da reforma agrária e movimentos sociais do campo no Brasil. As vozes que circulam nestes meios operam posicionamentos e posturas, num processo de formação cultural quase nunca cogerido por quem recebe a ação. É neste regime estético-político que podemos pensar em sintonias e dessintonias, próprias da resultante entre a “filtragem seletiva operada pelo desejo” e a maturidade política cabível, acúmulo de experiências vividas entre o fixo e o fluxo identitário que nos pertence.

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A montagem do vídeo se vale da garimpagem nos espaços compartilhadores de símbolos e sentidos – televisão, youtube, google imagens, sites oficiais, publicações, etc. É o recorte específico dado a edição destes materiais públicos que tensiona algumas das relações de interesse no estudo das imagens; é a junção e disjunção de trechos, em busca de um distinto discurso, que remontam as narrativas a nós ofertadas em seus “originais”. De-sintonias recoloca os discursos – da palavra e do visível – à maneira da típica brincadeira que desfigura o corpo pelos membros de modo que surjam inéditas quimeras.

Ainda que não escape inteiramente da subordinação (que podemos problematizar) da “função imagedoura” pela “função textual”, há ao menos uma confusão dirigente, por assim dizer: quando a relação causal direta entre o textual e o visual se fratura, que impressão prevalece? a voz rede-global ou o semblante camponês (direto ou figurado)?

Por entre lemas proferidos por âncoras e comentaristas de plantão da audiência televisiva no que tange a reforma agrária e os movimentos sociais do campo, são igualmente expostos ícones culturais em contra-senso, formando uma narrativa de “frontalidades” significantes – Arnaldo Jabor versus Sebastião Salgado, Di Cavalcanti versus Alexandre Garcia. E pelo interstício deste contraste surge amalgamando-o um discurso-ideias do urbano, asfálticas sensações cujo “cheiro do mangue” nos invade pra impedir que olvidemos a “febre dos ratos” que agasta a pele-cidade, dilacerando sua moderna impermeabilidade.

No caso específico das vozes escolhidas, há ainda uma quimera disfarçada e no emblema sonoro ostentado por Cid Moreira perfaz a vociferação de Leonel Brizola, num clássico direito de resposta transmitido na década de 1990. E é justamente nesta incorporação obsessiva dos planos em jogo, na unicidade do que se expressa (politicamente) distinto que advém esse discurso mediúnico e explicita toda a contradição das personagens – quem está a dizer o que? a disputa é pelo corpo-veículo que transmite aos milhões ou pela palavra (não) dita? nisso se escapa do que, ao certo? atentar à interpelação nos iguala a quem interpela? negar a locução reafirma seu enunciado?

De-sintonias joga com/nesse jogo de afirmações contrárias que se unem e tencionam o artefato audiovisual – a potência singular da forma (vida autônoma da imagem) contra a convenção comercial da história (letra morta do texto) que satisfaz o desejo do público (indústria). Termos de Rànciere aqui lançados pra pensar o exercício-pesquisa sobre a imagem e o som e a (sensível) partilha do conjunto. É também neste sentido que vale opor, pra entender a relação na/da partilha, os circuitos produzidos na relação entre áudio e vídeo. Como se dá a partilha – no sentido da fratura, divisão – entre os ícones imagéticos e os ícones sonoros?

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Se a questão é observar a relação de submissão da imagem pelo texto, do sensível pela história, parece prudente constatar que De-sintonias, mais claramente em seu trajeto final, impede e/ou evita a operatividade metamórfica de que nos fala Rancière, senão afirmando a especificidade dos materiais ao menos evidenciando um enclausuramento do dito contra o visto. A porção conclusiva do vídeo provoca não a semântica de “sintonia” mas sua (possível) correspondência inteligível. No desembaralhamento sonoro esvaem-se os ruídos, interferências que antes reforçavam a sensação de dessintonia, mas esta se acentua ainda mais na aparente limpidez (sintonia?) entre o agronegócio que “segurou a barra do Brasil nos últimos anos” – dito – e o enfileiramento da ossada humana feita brinquedo na mão do menino – visto.

O efeito contraditório/afirmatório desta sintonia parece ser produzido por um aspecto da racionalidade – que conta com a especificidade do que é imagem e do que é texto, mas também carece de uma afecção, de um abalo no que se sente durante a exibição do vídeo. Rancière argumenta sobre dois aspectos pertencentes a imagem, um como potência desvinculadora, puro páthos formulador de uma singularidade incomensurável, outro como elemento de ligação que resulta numa operação que torna comum. O texto, nesta abordagem do vídeo, seria um fator que valoriza o elemento de ligação da imagem e desmobiliza (distrai?) sua “singularidade incomensurável”?

Algumas pistas surgem e mobilizam vontades de análise, como a intencionalidade na montagem de materiais audiovisuais e na repercussão que ela pode ou quer ter na relação entre imagem e educação. Dizer sobre incomensurabilidade é aceitar que estamos falando do plano da sensação, aceitando o convite de filósofos como Deleuze. Se o paradoxo da visibilidade versus invisibilidade também está representado naquilo que não se resolve entre o que se representa e o que é captado, então toda intencionalidade investida na elaboração de um vídeo está semi fadada ao fracasso. Escapa às mãos o suposto controle que qualquer pretensão totalitária queira ter; abre-se às tantas as leituras sentidas pelo feixe luminoso condensando partículas de tempo raptado – e a partir de toda atualização que se faz desde o caos partem outras investidas a bailarem nele.

Ainda assim a intencionalidade permanece semi exitosa, e mesmo que toda imagem – clichê não clichê – permita gerar diferenciação, são os arranjos e contextos socioculturais e suas interpretações de realidade que forjam a interpretação (mais ou menos hegemônica) que as imagens escolhidas terão. Parece ser o exercício de lançamento e escuta que se exerce nos espaços e processos pedagógicos que poderiam orientar análises sobre a potência das imagens, de maneira a “cogerir” o inconsciente e a subjetividade coletiva, numa política intencionalidade.

“A história do cinema é a história da potência de fazer história”. [56]. É com esta sentença que Rancière monta sua argumentação em torno da noção de frase-imagem – uma nova potência sensorial, um novo ritmo onde “não existe mais medida, apenas o comum; é o comum da desmedida (ou do caos) que doravante confere à arte sua potência”. A frase-imagem seria a medida contraditória da arte estética, para que esta não se perca no território da grande explosão esquizofrênica ou no do torpor do grande consentimento mercantil, mantendo-se a/na potência de pensamento comum, reafirmando o intercruzamento das esferas da racionalidade.kombi

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