Em particular, é o olhar pro mundo das pessoas do meio rural que a eles me conecta, agricultores e agricultoras que ao se organizarem expressam uma humanidade (um projeto civilizatório?) com força política que nos apresenta outra possibilidade de vir a ser. Em referência à época de meus próprios trabalhos em comunidades rurais, as intercessões que dali advieram promoveram substância aos projetos de extensão e pesquisa que aconteciam em muitos assentamentos paulistas. Neste universo, as saliências do imaginário hegemônico, dessa visão cristalizada do “evolucionismo campo-cidade” e das relações de poder e dominação são facilmente palpáveis, até porque na sequência evolutiva de Gordon Childe [6] o campo está numa fase ainda a ser superada pela primazia moderna e civilizatória das cidades. No entanto, um olhar mais cuidadoso observa nuances que deixam em suspenso categorizações deste tipo.

Nesses trabalhos em assentamentos, o outro, para mim, era a campesinidade, o olhar campesino. Olhar caleidoscópico, sucessão vertiginosa, cambiante, de ações e sensações que preenche o imaginário e descoloniza:

campedoscópioAquela plantação de frutas em nada se assemelha ao ordenamento padronizado dos laranjais de Limeira-SP, que são vistos até mesmo da rodovia Anhanguera, ou da uniformidade com que circunstanciam os bananais no Vale do Ribeira, divorciado de outras culturas. Não. Nem mesmo as goiabeiras enfileiradas de outros lotes do assentamento se comparavam àquele pomar. A começar pelo nome de batismo: pomar… Pomar não nos remete a apenas uma fruta, pensa-se logo em várias. E caminhar por ele não permitiria, tão cedo, que se nos achegasse a monotonia: eram muitas as surpresas num breve passeio. Tantas frutas, pés disso e daquilo, folhas finas, folhas vistosas, plantas estranhas ao olhar urbano. Jenipapo, caju, urucum, banana, acerola e mexerica compunham não só o quadro vivo da diversidade, mas a oferta de alimento para a família, o pai, a mãe, as filhas e genros, vizinhos e amigos, como também para os porcos, galinhas, cachorros, cavalo e para o bezerro que víramos correndo no pasto. O pomar remonta o uso amistoso da terra, nos referenciando a um quintal antigo que floresce em diversidade, cores, sabores e memórias. [7]

A importância do contato direto em espaços desta (des)ordem oferece a chance de explorar e aprofundar diversos mecanismos de percepção que não são e nem podem ser proporcionados de outra maneira. A vivência comunitária, como nos assentamentos rurais, e o real contato com as pessoas do lugar viabilizam uma “existência” outra, neste caso uma existência campesina, mesmo que instável.

Meu encontro era de natureza cidade-campo; era o não-cidade, o não-asfalto, o não-metrópole; era o que produz e traz à mesa, o que pertence a outro cronos, que não os do semáforo, do apito da fábrica ou do ponteiro digital de um relógio de pulso, mas do tempo que pulsa o cio da terra, do som da semente que germina, da hora da colheita, do pão na mesa solidário do trabalho familiarizado.

Pela óptica da agroecologia estabelecia contato com as “dimensões” sociais e ambientais a serem consideradas… nada diferente de exprimir a importância de enxergar a totalidade (ou o que pudéssemos atingir na tentativa de buscá-la) e a imponderabilidade dos assentamentos rurais, a gerarem incômodo a um certo regime da razão científica. A querência parecia ser dali, e a vontade era incorporar, a pleno, “o esqueleto, a carne e o espírito” [8] do lugar. Mas em tempo de produtividade exacerbada e da moderna razão instrumental, pouco tempo se reserva à maturação dos processos subjetivos e sua integração num corpus investigativo… Uma agroecologia que escapa.

Há ainda a reflexão de Malinowski sobre a concepção linguística e o “corpus cultural”, que parecem ser algo como vivenciar, pela linguagem, o corpo (cultural) do outro, o “corpus inscriptionum”. Uma incursão de linguagem, enxergar as coisas do mundo, de um mundo, tendo a veste de outro óculo, nova lente; imersão no espaço comunitário a ser estudado e também em seu domínio linguístico. Certamente esse mergulho é mais contrastante quando a língua falada no local é outra, ainda assim o universo linguístico de quem vive na cidade é notadamente diferente de quem trabalha no campo. O tempo, portanto, de trabalho na comunidade infere diretamente na capacidade de ao menos dimensionarmos esse corpo cultural.

Em suma, o exercício acadêmico permitiu-me tatear um outro imaginário, um outro corpo de ideias e ideais. Outra simbologia emana do conjunto daqueles que fecundam a terra.

O olhar que se lança sobre as agriculturas populares acaba por enxergar o quê? reciprocidade? colaboração? arcaísmo? subversão? Acaba por se deparar com a herança tempo-espacial que nos reflete como um espelho suspeito – enxergar o outro é desvelar-me… E este fato parece conter a recriação da unidade básica da vida social que se constitui não por indivíduos, mas por um duplo, que só pode ser nomeada como “nós-eu” [9]. Esta visão parece indicar amplos horizontes, preenchidos da atmosfera que revigora o fôlego da existência humana, num desmergulho da realidade aparentemente imutável, chapada e lacrada.

Surge a pergunta “quem é o camponês?” pois soa-me como se perguntasse de mim mesmo, “quem é o camponês-eu?”. Esta personagem que re-existe como uma fértil imanência da terra; que vida ele-eu tem? que terra-território, material e imaterial, ele fia e desfia, como quem, ao semear o chão pro fruto colher, reinventa o gesto milenar? quem são estes seres que, fecundando a mãe-terra se tornam, sem perceber, guardadores de rebanho, sentinelas do amor?

Os elementos culturais que vejo preencher quem sou – apenas mais um citadino de rurais raízes – entram em profusão pelo embate, que é também cultural, na questão agrária. Minha experiência, portanto, ressignificou não apenas o olhar para o outro, mas uma nova compreensão do que sou. Uma travessia que indica algum encontro no “em mim”.

I have crossed a thousand bridges
In my search for something real
There are great suspension bridges
Made like spider webs of steel
There are tiny wooden trestles
And there are bridges made of stone
I have always been a stranger
And I’ve always been alone

There’s a bridge to tomorrow
There’s a bridge from the past
There’s a bridge made of sorrow
That I pray will not last
There’s a bridge made of colors
In the sky high above
And I think that there must be
Bridges made out of lovepontesim(…) When the bridge is between us
We’ll have nothing to say
We will run through the sun light
And I’ll meet her halfway
There’s a bridge made of colors
In the sky high above
And I’m certain that somewhere
There’s a bridge made of love

I can see her in the distance
On the river’s other shore
And her hands reach out longing
As my own have done before
And I call across to tell her
Where I believe the bridge must lie
And I’ll find it, yes I’ll find it
If I search until I die [10]

Travessia em território subjetivador, território molecular em face das diferenças que a outra margem sempre oferta; território ponte que faz facear intensidades e velocidades subjetivantes… Ponte que tende a alcançar uma terceira margem campesina, e por isso situa duas instabilidades: a ligação que é sempre tendência a, meio de caminho, e território-destino camponês que se afirma movediço, amassado em dobra e desdobra.

O encontro se faz em ponte, na ponte, com ela. Fornece o deslocamento em diversidade, em diferença. Talvez seja isso que permita a emergência de um nós-eu ampliado, existir que difere. Alteridade camponesa transitória, terra arrastada na formação do que forma identidade.widget5

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